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terça-feira, 7 de julho de 2020

Investigação sem indícios é abuso de autoridade



Por Henrique Hoffmann, Adriano Costa e Eduardo Fontes

Lei 13.869/19 substituiu a Lei 4.898/65 como vigente Lei de Abuso de Autoridade, contendo a tipificação de crimes funcionais, cometidos pelo agente público que extrapola os limites de atuação e fere o interesse público.

Façamos uma análise do crime de instauração ou requisição de investigação sem indícios, localizado no artigo 27 da Lei 13.869/19, cujo tipo penal dispõe:

“Artigo 27 — Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada”.

Sublinhe-se, desde logo, que não basta o dolo de praticar a conduta típica de abuso, sendo preciso o animus abutendi. O agente público deve agir com a finalidade específica (elemento subjetivo especial) de, alternativamente (artigo 1º, §1º): a) prejudicar outrem; b) beneficiar a si mesmo ou a terceiro; c) por mero capricho; e d) por satisfação pessoal.

Claro que a presunção é de que o agente atua com boa-fé, cabendo a quem alega má-fé comprová-la com elementos concretos e não meras suposições. Portanto, não comete abuso de autoridade o agente que errar ou atuar com desídia.

Grife-se ainda que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (artigo 1º, §2º), vedando-se crime de hermenêutica.

Para uma correta análise da conduta (tipo objetivo), fundamental tecer esclarecimentos acerca da obrigatoriedade e justa causa em relação à instauração de investigação.

A instauração de inquérito policial exige a verossimilhança do relato do crime e de seu autor, e ao menos a possibilidade da colheita de indícios iniciais de materialidade e autoria. São necessários indícios (ainda que mínimos), entendidos não como prova indireta, mas como elemento de convicção semipleno, de menor valor persuasivo, de percepção vertical rasa e cognição sumária.

Não há na lei, jurisprudência ou doutrina a definição taxativa de quais elementos configuram o princípio de justa causa. Todavia, os tribunais superiores já afirmaram que a denúncia anônima por si só não autoriza a deflagração do inquérito policial e, de outro lado, são indícios mínimos a matéria jornalística a palavra isolada da vítima em crimes cometidos na clandestinidade, a palavra do colaborador, o relatório policial ou os dados financeiros.

Vale lembrar que a falta de justa causa não é a única hipótese que impõe a interrupção do inquérito policial. É cabível o seu trancamento nos seguintes casos: a) atipicidade; b) falta de indícios mínimos de materialidade e autoria (justa causa); c) excludente de punibilidade; ou d) ausência de condição da ação (representação ou requerimento da vítima).

Noutro giro, o fato de o inquérito policial não poder ser instaurado sem indícios mínimos não significa que o Estado-investigação ficará de mãos atadas e que a persecução penal estará morta. A lei processual prevê o mecanismo de investigação preliminar com objetivo de se tentar atingir tais elementos básicos de convicção (artigo 5º, §3º do CPP), exigindo que o inquérito seja instaurado após verificada a procedência das informações. Na dicção dos tribunais superiores:

“A autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa ‘denúncia’ são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações.
A instauração de VPI (Verificação de Procedência das Informações) não constitui constrangimento ilegal, eis que tem por escopo investigar a origem de delatio criminis anônima, antes de dar causa à abertura de inquérito policial”.

Essa é a ferramenta criada pela legislação para averiguar a verossimilhança da noticia criminis e a viabilidade da investigação, e servir de barreira contra inquéritos policiais absurdos. Assim como o inquérito policial se qualifica como filtro contra acusações temerárias.

Se o indivíduo tem o direito de não ser submetido indevidamente ao constrangimento de um processo temerário (strepitus judicii), tampouco pode ser desarrazoadamente reprimido por inquérito policial indevido (strepitus investigationem).

De outro lado, sabe-se da existência do princípio da obrigatoriedade, do qual emana o dever de atuação dos órgãos estatais pra promover a investigação (artigo 5º do CPP) e a ação penal (artigo 24 do CPP) nos crimes de ação penal pública (que não exijam vontade da vítima). A regra, de fato, é a atuação compulsória da Polícia Judiciária e do Ministério Público.

Contudo, é preciso entender que não se trata de norma absoluta, encontrando limites:

“Do ponto de vista da realidade judiciária, desde sempre delegados de Polícia não abrem inquérito policial para apurar crimes de origem desconhecida ou que, por qualquer razão, se revelem totalmente sem interesse. Por exemplo, o relato do furto de um celular esquecido na prateleira de um supermercado, sem que se tenha nenhum dado da autoria, não será objeto de inquérito. Neste caso, não se trata de prevaricação da autoridade policial, mas sim de evitar-se perda de tempo e gastos inúteis. (…) Vamos continuar fingindo que o princípio da obrigatoriedade vige em sua plenitude, mesmo sabendo que não é praticado?”.

Não se olvida que o inquérito policial é regido quanto à instauração, pelo princípio da obrigatoriedade, o que significa que, em regra, a partir do recebimento da notitia criminis, o delegado deve deflagrar o inquérito policial (ou termo circunstanciado de ocorrência ou boletim de ocorrência circunstanciada, conforme se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo ou ato infracional). Todavia, essa regra é mitigada caso se esteja diante da ausência de um rudimento de justa causa.

Com efeito, havendo dúvidas sobre a existência de indícios mínimos de materialidade e autoria, não se deve instaurar o inquérito policial. E se for incerta a presença de indícios veementes do crime e de seu autor, o indiciamento e a acusação não devem ser feitas. E que não se alegue para sustentar o contrário a existência do polêmico princípio do in dubio pro societate:

“Percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto ‘princípio in dubio pro societate’, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova.

Por mais que se queira propalar a máxima de que, no átrio da ação penal, teria força a máxima in dubio pro societate, em verdade, tal aforisma não possui amparo legal, nem decorre da lógica do nosso sistema processual penal, constitucionalmente orientado. A tão só sujeição ao juízo penal já representa, per se, um gravame, cuja magnitude Carnelutti já dimensionava como verdadeira sanção. Desta forma, é imperioso que haja razoável grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios. Trata-se de uma das fases do escalonamento da cognição, que se inicia pelo indiciamento, passa pelo recebimento da acusação e se ultima com a sentença, recebendo a pá de cal com o trânsito em julgado.
Que fique bem claro que a inexistência do princípio do in dubio pro societate não traduz a exigência de certeza para investigar, indiciar ou acusar, mas apenas a não admissibilidade da utilização da máxima como artimanha para camuflar o não atingimento do standard probatório”.

O texto legal criminaliza a conduta de requisitar, que significa exigir providência em razão da autoridade que o agente público se encontra investido. Já o verbo instaurar tem o sentido de formalizar o início de um procedimento. Reponde pelo crime tanto quem instaura a investigação (delegado) ou quem requisita a instauração (juiz ou promotor). Diferentemente do crime do artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade, o tipo penal em análise não pune a conduta de proceder (prosseguir) com o procedimento. Portanto, esse delito não alcança o delegado que assume a presidência de inquérito policial sem indícios mínimos instaurado por outra autoridade policial.

No que tange ao poder de requisição do MP, a criminalização de seu abuso não se trata de indevida restrição a essa prerrogativa constitucional:

“Se a própria Constituição Federal prevê que esse poder de requisição deve ser exercido com a indicação dos fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais, dúvida não há no sentido de que tal poder não pode ser exercido de maneira abusiva, a exemplo do que ocorre quando o órgão ministerial requisita a deflagração de um inquérito policial para apurar condutas atípicas, prescritas, ou quando não há nenhum indício, mínimo que seja, indicando a verossimilhança da suspeita da prática de crime a demandar, portanto, o aprofundamento das investigações”.

Identificada eventual requisição infundada, será objeto de manifestação e retorno para reapreciação do requisitante, sob pena deste também incorrer na figura do artigo 27 da Lei de Abuso de Autoridade.

Não há previsão típica para a conduta de solicitar investigação sem indícios, mas a representação leviana pode ensejar responsabilização criminal por comunicação falsa de crime (comunicar crime que não se verificou — artigo 340 do CP), denunciação caluniosa (dar causa à instauração de investigação contra inocente — artigo 339 do CP) ou calúnia (imputação falsa de crime — artigo 138 do CP).

A requisição ou instauração recai sobre procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, objeto material que abrange diversos procedimentos apuratórios, a exemplo do inquérito policial, termo circunstanciado de ocorrência, boletim de ocorrência circunstanciado, procedimento investigatório criminal, investigação de CPI e procedimento administrativo disciplinar.

Não é crime a instauração ou requisição da verificação de procedência de informações, que é justamente o mecanismo para possibilitar a colheita de indícios mínimos que somente então autorizam a deflagração do inquérito policial.

Esta infração penal só atinge a investigação (e não o processo), e mesmo assim apenas aqueles de natureza penal e administrativa (e não civil). Se a conduta recair sobre processo (penal administrativo ou civil), configura-se o tipo penal do artigo 30 da Lei 13.869/19.

Para que o delito se aperfeiçoe, a lei exige a falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. Isso significa que se a investigação for precedida de algum indício, ainda que mínimo e frágil, não se aplica este crime do artigo 27.

O parágrafo único deste tipo penal contém uma cláusula de exclusão da ilicitude. O dispositivo afirma que não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.

Nessa toada, no âmbito administrativo, a sindicância é o procedimento preliminar de investigação; na seara criminal, a investigação preliminar sumária representa a verificação da procedência das informações.

Não exclui a ilicitude o fato de, após instauração de investigação contra alguém sem qualquer indício, por mero capricho ou satisfação pessoal da autoridade, surgirem provas de que o indivíduo realmente praticou a infração penal apurada. O raciocínio é o mesmo que se faz com a violação da casa sem fundadas razões: a sorte de se confirmar posteriormente a situação de flagrante delito não tem o condão de retroagir e sanar o vício em sua origem.

Por fim, vale a pena notar um interessante conflito aparente de leis penais. Os crimes dos artigos 27 e 30 em muito se parecem. As diferenças estão nos detalhes. O artigo 27 pune as condutas de instaurar ou requisitar (e não de proceder), enquanto o artigo 30 tipifica a conduta de instaurar e proceder (e não de requisitar). Ambos os crimes pressupõem a falta de indícios mínimos da infração. O artigo 27 abrange a investigação (penal ou administrativa); já o artigo 30 engloba o processo (penal, administrativo ou civil).

A pena do artigo 30 (dois a quatro anos) é o dobro da sanção penal do artigo 27 (um a dois anos), o que se justifica ao entender que, apesar de uma investigação sem indícios mínimos ser lesiva à vítima, um processo sem justa causa é mais danoso — pois dele podem emergir sanções que atingem de maneira mais grave a esfera de direitos fundamentais do envolvido.

Quanto à conduta de instauração dos procedimentos investigatórios em desfavor de quem o sabe inocente, acreditamos ter caminhado mal o legislador, pois conferiu ao agente público tratamento mais benéfico do que a incidência do próprio artigo 339 do Código Penal (denunciação caluniosa). Esse crime comina pena mínima e máxima quatro vezes maior do que as da presente infração penal.






Henrique Hoffmann é delegado de Polícia Civil do Paraná; autor pela Juspodivm; professor da Verbo Jurídico, Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná; mestre em Direito pela UENP; colunista da Rádio Justiça do STF. Foi professor do CERS, TV Justiça do STF, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional de Justiça, Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola do Ministério Público do Paraná, Escola de Governo de Santa Catarina, Ciclo, Curso Ênfase, CPIuris e Supremo. www.henriquehoffmann.com

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás; autor pela Juspodivm e Impetus; professor da Escola Superior da Polícia Civil de Goiás, Verbo Jurídico e CERS; membro da Academia Goiana de Direito; doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

Eduardo Fontes é delegado de Polícia Federal; autor pela Juspodivm; professor do CERS; especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça; coordenador do IBEROJUR no Brasil; aprovado nos concursos de Procurador do Estado de São Paulo e Delegado de Polícia Civil no Paraná.


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