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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Biografia entrelaça vida e obra de João Cabral de Melo Neto

Livro de Ivan Marques conta a história do poeta que tentou esconder a si mesmo de seus versos





Por Luiz Prado - Jornal da USP


Com um estilo calculadamente racional e enxuto de subjetividade, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nunca pretendeu desnudar a própria vida em seus poemas. Desinteresse que não foi compartilhado por seus admiradores, presenteados agora com João Cabral de Melo Neto – Uma biografia, livro escrito por Ivan Marques, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.


Nascido em Recife, nos braços de uma família pertencente à elite açucareira, repleta de bacharéis e advogados, João Cabral passou a infância nas paisagens de engenhos das cidades de São Lourenço da Mata e Moreno. Antes de se entregar à poesia, sonhou com o futebol profissional e foi um craque juvenil. No final da adolescência, frequentou a vida intelectual do Recife e depois partiu para o Rio de Janeiro, onde conheceu Carlos Drummond de Andrade, que se tornaria seu grande amigo e referência. Foi lá também que publicou o primeiro livro, A pedra do sono, em 1942.


Sem interesse em ocupar posições tradicionais das elites, tais como as proporcionadas pelo curso de Direito da prestigiosa Faculdade do Recife, não frequenta nenhuma universidade. Após breve passagem pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), passa a integrar o quadro de diplomatas brasileiros, a partir de 1946, um ano depois de publicar O engenheiro. Faz assim da diplomacia sua carreira, com estabilidade para se dedicar à poesia e possibilidade de conhecer outras culturas. Serve em Londres, França, Paraguai, Senegal, Portugal e Espanha, lugar que o marca profundamente e impacta sua poesia.


Das experiências da Espanha dominada pelo franquismo, das reflexões sobre a miséria brasileira e das leituras marxistas surgem as cores sociais de obras como O cão sem plumas (1950) e O rio (1954). É também a consciência social que o coloca em problemas quando é perseguido, acusado de integrar uma célula comunista no Itamaraty, e passa quase três anos afastado de suas funções, ainda no início dos anos 1950. Tensão que não impede, entretanto, a confecção de seu trabalho mais famoso, Morte e vida severina, de 1955, uma encomenda de Maria Clara Machado, então diretora da companhia teatral O Tablado.


Embora a própria companhia não levasse a montagem adiante – para frustração do autor –, em 1965 o sucesso estratosférico da encenação no Tuca, em São Paulo, com músicas de Chico Buarque, consagraria João Cabral para o grande público e serviria do carimbo definitivo para sua entrada na Academia Brasileira de Letras, para a qual é eleito em 1968.


João Cabral encerra a carreira diplomática no início dos anos 1990, depois de se tornar cônsul da cidade do Porto, em Portugal. Uma cegueira progressiva, que o impede de ler e escrever, perpassa sua vida por toda a década, acompanhada da depressão. Falece, finalmente, em 1999, no Rio de Janeiro.


Singularidade


João Cabral surge como poeta nos anos 1940, sendo usualmente enquadrado no que ficou conhecido como a Geração de 45 ou a terceira geração do Modernismo. “Ele tem uma singularidade não só com a tradição brasileira, mas com a compreensão geral do que é a poesia”, comenta Marques. “Ele discute a tradição lírica e o próprio conceito de poesia, negando que ela seja inspiração e propondo que a poesia seja muito mais o resultado de um trabalho de arte do que o produto das emoções do poeta ou de qualquer vaga e obscura inspiração.”


A dicção poética seca levou parte da crítica a caracterizar João Cabral como um construtivo, um sujeito que racionaliza a construção poética. Para alguns, comenta Marques, sua poesia não seria apenas fria, mas mineral, tomando por referência a pedra, imagem central na obra do pernambucano. “João Cabral foi um grande artífice, um exímio poeta no sentido de lidar com as palavras, imagens e ritmos e criar coisas novas.”


Essa lapidação da palavra, entretanto, não impediu que sua poesia também tivesse emoção, afirma o biógrafo. Marques cita a expressão “máquina de comover”, presente na epígrafe de O engenheiro, como uma imagem para o próprio fazer poético. “Ali fica claro que a emoção está presente na obra. Mas ela é produzida racionalmente.”


Essa abordagem inovadora do que é a poesia seria determinante para as gerações seguintes. “Não podemos deixar de mencionar, como prova da novidade que João Cabral representa e da novidade que injeta na poesia brasileira, a influência que ele tem nas vanguardas posteriores. Ele influenciou a vanguarda poética dos anos 1950, que quis radicalizar a ideia do poema como artefato a ser construído radicalmente”, explica o professor. “A imagem do poeta engenheiro foi decisiva para a poesia concreta.”


Marques avalia, contudo, que a influência de João Cabral não foi localizada apenas entre os concretistas. Para o biógrafo, toda a poesia e arte engajada dos anos 1960 também são tributárias de sua obra. “O fato de Morte e vida severina ter essa montagem de sucesso, nesse momento crucial da história brasileira, mostra que João Cabral teve um poder de irradiação para fora da poesia.”


Futebol, dor de cabeça e melancolia


A construção do livro, explica Marques, mobilizou uma variedade de fontes que incluem entrevistas com familiares, amigos e editores, trabalhos anteriores dedicados ao poeta, jornais e revistas e a correspondência publicada e inédita que o autor manteve ao longo da vida. O professor conta que a própria obra de João Cabral também serviu de fonte fundamental. O que poderia soar estranho tendo em vista um autor que sempre se escondeu de seus versos, recusando a primeira pessoa. O biógrafo pontua, contudo, que é exatamente nos poemas que repousam os temas e obsessões da vida de João Cabral, como Pernambuco, a Espanha – sobretudo Sevilha, com suas touradas e a dança flamenca – e a própria poesia.


Com tudo isso, Marques entrega ao público uma peça de 560 páginas, dividida em 20 capítulos, que acompanha a trajetória de João Cabral desde a infância até a morte em 1999. No prólogo, o professor conta não o nascimento da pessoa João Cabral, mas do poeta: o livro abre com o relato da primeira viagem feita ao Rio de Janeiro, no carnaval de 1940. Momento decisivo no olhar de Marques, pois é nesse episódio que o pernambucano conhece pessoalmente nomes importantes da poesia nacional como Drummond, Murilo Mendes e Jorge de Lima.


A partir do capítulo seguinte, a narrativa toma rumo cronológico e frequenta tanto aspectos da vida privada do poeta quanto as circunstâncias em torno de sua obra. É assim que entramos em contato com informações menos imediatas da biografia de João Cabral, como suas experiências com o futebol.


“Ele foi um craque aos 15, 16 anos”, conta Marques. “Ele era um atleta promissor, inclusive atuando ao lado de jogadores como Ademir de Menezes, que depois seria um grande nome do futebol brasileiro.” Fato curioso desta relação futebolística é que, embora a família paterna estivesse ligada ao América do Recife e este fosse seu time de atuação e coração, foi pelo Santa Cruz, time da família da mãe, que João Cabral ganhou seu único título. Isso porque, após o América ser eliminado de um torneio, João Cabral foi chamado para disputar a final pelo Santa Cruz, sagrando-se campeão.


Nessa idade a literatura ainda não se apresentava como um futuro possível para o jovem João Cabral. A escolha pela poesia viria alguns anos depois, após desistir da ideia de ser crítico literário, por achar que precisaria de muito estudo para o posto e não estaria à altura. “No final da adolescência ele começa a ler poetas modernistas e a fazer, com 17, 18 anos, os primeiros poemas, que não tinham nada a ver com aquilo que sua poesia seria”, revela Marques. “Era um poeta jovem imitando outros poetas e descobrindo pela via do Modernismo a possibilidade de escrever poesia.”


Outro dado relevante da biografia de João Cabral apresentado pela obra é a dor de cabeça crônica que acompanharia o poeta por quase toda a vida e, segundo Marques, constitui um tópico decisivo para entender seu temperamento. “Ele passou a vida consumindo uma quantidade absurda de aspirinas, o que inclusive trouxe outros problemas de saúde”, conta o professor. “Passar o tempo todo com dor de cabeça interferia em seu humor, sua visão de mundo e na forma como ele se relacionava com as coisas.”


De acordo com o biógrafo, além de muitas tentativas de tratamento, o poeta teria feito ao longo da vida cerca de 30 cirurgias para se livrar do problema. Entre métodos convencionais e alternativos, começou a imprimir livros quando estava em Barcelona, iniciando uma carreira de tipógrafo sob aconselhamento de um médico que lhe sugeriu atividades manuais como terapia. O resultado não foi o esperado e só muitos anos mais tarde o problema seria sanado, graças a uma intervenção cirúrgica.


Junto às dores de cabeça, a depressão é outro problema que atravessa toda a biografia de João Cabral. Considerada pelo próprio como melancolia, do tipo declamada pelos poetas do século 19, pode também, como aponta Marques, ser chamada de angústia. “A angústia é um sentimento muito presente”, comenta o professor. “João Cabral era uma pessoa com muita sensibilidade, nervos à flor da pele, muito emotivo, o contrário da imagem que se faz do poeta. Isso fica claro para quem lê.”


Além de se irritar facilmente, o poeta carregava um temperamento propenso a problematização. Com uma vida interior movimentada e em certa desordem, o próprio João Cabral dizia que era na poesia que buscava organizar essa melancolia. Um processo nem sempre fácil, pois, conforme aponta Marques, apesar de conhecer a própria grandeza, João Cabral precisava constantemente ser lembrado disso, para não viver a sensação de não ser reconhecido.


“Não que ele tivesse do que reclamar, pois foi um poeta muito bem acolhido desde cedo. E seu valor e grandeza foram reconhecidos rapidamente: um poeta que, com menos de 30 anos, tem três ou quatro livros e já era considerado um ponto de inflexão na poesia brasileira.”


Marques ressalva, contudo, que nenhum desses problemas impediu que João Cabral estabelecesse relações de amizade ao longo da vida, seja no Brasil ou nos países em que esteve como diplomata. Dono de grande generosidade, ajudou artistas silenciados pelo franquismo na Espanha e teve contato com nomes como Vinicius de Moraes, Rubem Braga e Clarice Lispector, ocupando uma posição central para além do próprio campo da poesia.


“O tipo de poesia que ele colocava em cena era muito particular, como antipoesia e negação da poesia lírica tradicional. Era uma singularidade enorme que o deixava em uma posição de certo deslocamento dentro de uma tradição poética brasileira e de língua portuguesa”, destaca o professor. Essa divergência, entretanto, não se traduzia nas relações pessoais. João Cabral considerava Vinicius de Moraes muito sentimental, por exemplo, mas isso não impediu que fossem grandes amigos. “Ele era uma pessoa que se relacionou muito bem isso e isso é um dado curioso de sua biografia.”


Vida e obra


Apesar desse contraste não ser desconhecido de Marques no início de suas pesquisas, sua dimensão o surpreendeu. “É o contraste entre uma obra muito bem organizada e uma vida pessoal um tanto mais dramática, seja pelas doenças, dor de cabeça, insegurança, uma certa paranoia que vem desde a infância. João Cabral era uma pessoa muito sensível e atormentada. Essa é uma palavra que ouvi muito ao longo das entrevistas: ele era um homem bastante atormentado.”


Para o professor, a influência das experiências de vida sobre a própria obra do poeta é outro ponto sobre o qual o livro lança luz. “Por exemplo, Morte e vida severina. Muitos acham que foi um acidente, um acaso em sua obra, uma encomenda recebida de Maria Clara Machado e um texto feito rapidamente, sobre o qual ele passou o resto da vida dizendo que tinha vergonha. Mas ele sabia que era um grande texto, amigos reconheceram sua qualidade, mesmo enquanto ele dizia que era a pior coisa que tinha feito.”


Segundo Marques, a biografia mostra que, em vez de acidente, tudo foi fruto de uma trajetória consciente do poeta. “Ele já havia se convertido ao marxismo antes mesmo de ir para a Espanha pela primeira vez. Mas na Espanha, tomando contato com os autores espanhóis, João Cabral começa a perceber a importância das fontes populares, da dicção popular, do vocabulário concreto, da rima toante e dos ritmos primitivos. E ele faz uma série de obras em uma sequência muito consciente. Escreve O cão sem pluma, depois O rio e finalmente Morte e vida severina, formando uma trilogia. Portanto, não é algo casual, desleixado ou imprevisto.”


Diplomacia e comunismo


Faceta menos celebrada da vida de João Cabral, a diplomacia surge, conforme explica Marques, como um meio de vida e possibilidade de viver fora do Brasil. De acordo com o biógrafo, a documentação levantada revela um funcionário correto, mas imerso em atividades burocráticas e com poucas ações de relevo. João Cabral não teria investido grandes energias na carreira e só chegou ao posto de embaixador tardiamente, na África, praça periférica no tabuleiro geopolítico. “Ele queria mesmo poder escrever e sustentar a família”, aponta o professor.


Essa atuação discreta não significa, entretanto, que sua passagem pelo Itamaraty ocorreu sem sobressaltos. O episódio mais conhecido, e também mais dramático, ocorreu no início dos anos 1950, quando foi acusado de tentar implantar uma célula comunista na diplomacia brasileira ao lado de outros colegas de profissão.


O interesse de João Cabral pelo marxismo e as pautas sociais pode ser traçado a partir de sua mudança para o Rio de Janeiro, com destaque para seu convívio com Drummond, que vivia então sua fase poética mais social, na qual produzira obras como Sentimento do mundo, José e A rosa do povo. A experiência carioca de João Cabral marcaria uma reviravolta política que se concretizaria na Espanha.


Lá, o poeta aprofunda suas leituras, interessado na discussão teórica e posicionado em um papel de resistência ao franquismo. É embalado por essa energia, quando residia em Londres, que rascunha uma carta endereçada a outro diplomata, Paulo Cotrim, solicitando ao colega um artigo sobre a economia brasileira para um periódico britânico. O documento acaba vazando pelas mãos de outro diplomata, Mário Calábria, e torna-se argumento contra João Cabral, amplamente manchetado de maneira sensacionalista no jornal Tribuna da Imprensa.


Para Marques, o contexto da Guerra Fria, com o auge da caça às bruxas do macartismo, aliado à situação brasileira, explicam a dimensão do episódio. “Carlos Lacerda era um político de oposição a Getúlio Vargas, tinha um jornal, a Tribuna da Imprensa, e resolveu atacar o Getúlio via diplomatas do Itamaraty, que foram todos acusados de fazer parte de uma célula comunista internacional.”


João Cabral acaba afastado de suas funções em 1952 e só é readmitido em 1955. Volta a viver no Brasil durante esse período, no qual trabalha como jornalista. Segundo Marques, o episódio traumático o afastaria de um envolvimento mais ativo com a política, impedindo-o de ser um artista mais afirmativo nas críticas durante a ditadura militar. “Até o sucesso de Morte e vida severina era visto com certo desconforto, porque a peça lembrava aos militares que ele era alguém com uma posição de esquerda”, revela o professor.

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