Edison Veiga - De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
"As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto sublimaram."
Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema rímico fixo.
Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal.
Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.
Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali narradas.
Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenas de "linguagem", quase como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se expressar por escrito, ou seja, o latim.
E, protagonista e fruto de um momento histórico de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.
Doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".
"Constituem de fato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países lusófonos", argumenta ele.
Poeta fundador
"Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto", analisa Rossetti.
"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."
Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco contextualiza a obra como parte de um momento de "dignificação da língua portuguesa como língua de cultura".
"Até o século 16, era muito raro que um autor em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16, as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano ou o latim em vez do português", esclarece ela.
Arruda lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda (nascido provavelmente em 1487 e morto em 1558), "que ousavam essa aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português".
"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.
Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescrições em língua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a professora.
Era um período de ebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de cultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Arruda. "'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide."
"Porque 'Os Lusíadas' são escritos em gênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. 'Os Lusíadas' estão em linha direta com outras épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma Antiga]", diz a linguista.
Para o escritor Ênio César Moraes, professor de língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico.
No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema "afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática da obra, em comparação às produções grega e romana", interpreta.
Já o segundo ponto está no fato de que o texto de Camões é a "narrativa de grandes feitos do povo português, na pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações".
"Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutor de Camões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa Arruda.
Shakespeare, Alighieri…
A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas normas.
"Camões representou esse movimento de defesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento do latim", diz a linguista Arruda.
"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrever em português", acrescenta ela.
Camões mesmo já havia escrito poemas em espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em latim, conforme pesquisas de Arruda.
"Do ponto de vista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas."
"A obra de Camões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena, uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante."
Rossetti lembra que a partir das letras de Camões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento ocidental" em língua portuguesa. "É um novelo de muita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.
Professor Moraes ressalta que a época em que o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes".
"Como sabemos, a língua é um dos principais elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.


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