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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Fahrenheit 451: um livro mais moderno que nunca



A obra ‘Fahrenheit 451’, de Ray Bradbury, foi publicada em 1953 e trata de assuntos que, atualmente, estão vindo novamente à tona, denotando algo presente na conduta humana que parece atemporal, pois estava presente antes e após a escrita do livro: a censura ao pensamento livre e a pressão social para que tal fenômeno ocorra. A revisão da literatura, por conter passagens que provocam incômodos, e a repressão ao exercício ficcional da comédia são exemplos concretos desta situação e, dadas as implicações produzidas pelo referido panorama no âmbito democrático, parece razoável tecer algumas considerações a respeito.

 

A criação de Bradbury demonstra Guy Montag em crise existencial, pois sua profissão consiste em queimar as casas que continham livros, vistos como instrumentos nocivos à paz social, uma vez que faziam as pessoas refletirem sobre a vida. Curiosamente, como bombeiro, cabe ao personagem produzir chamas em vez de extingui-las. Como diz o chefe Beatty, “queime tudo, queime tudo. O fogo é luminoso e o fogo é limpo.”

 

O conhecimento contido nos livros sempre foi visto com certa desconfiança por parte da sociedade, pois a análise detida de questões da vida tem o condão de provocar mudança nas estruturas de poder da comunidade, algo que não interessa a todos. É o que diz Beatty: “um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?”. O que é dito aqui sobre o livro é cabível também em relação a outras formas de expressão, como ocorre atualmente com o humor. São conhecidos os casos de comediantes (no Brasil e em outros países) que têm sido vítimas de sistemáticos ataques (no âmbito das redes sociais e até judicialmente) por questionarem determinadas condutas na comunidade. Neste triste quadrante da história, a sensação é que pensar tornou-se perigoso em algumas democracias que, supostamente, merecem esta qualificação. Atualmente, parte relevante da coletividade parece satisfazer-se com algo que não provoque desconforto, como naturalmente ocorreria com a análise aprofundada das situações que ocorrem fartamente nos campos social, político e econômico. Pensamento de natureza semelhante é sintetizado nas palavras do mencionado personagem da obra de Bradbury: “tudo que peço é um passatempo sólido.”

 

Como grande metáfora da realidade, em ‘Fahrenheit 451’ há uma constatação (profética em relação à realidade do século XXI) acerca da origem do movimento de censura que ocorre na obra, constatada por Beatty: “a coisa não veio do governo. Não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha”. As redes sociais, evidentemente, com os chamados processos de cancelamento, potencializaram enormemente a sanha de vingança por parte de determinados grupos da comunidade. Note-se que, quanto maior for o valor dado aos julgamentos sumários feitos em tais ambientes virtuais, menor é o prestígio simbólico conferido às instituições. Afinal, se cabe a determinado grupo de pessoas (sem legitimidade conferida pela Constituição) acusar e julgar outros indivíduos, sem o respeito aos rituais que caracterizam o Estado Democrático de Direito, o Judiciário acaba tendo o respectivo campo de atuação reduzido na prática, dada a destruição de reputação praticada de modo prévio e informal. É o linchamento contemporâneo que, assim como a prática tradicional, explica-se falsamente com o verniz da suposta busca do bem comum. Não respeitar instituições significa, em última análise, desprezar a democracia.

 

Faber, personagem importante da obra de Bradbury, reflete de modo contundente (para a distopia contida na obra e para a realidade contemporânea): “entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida”. Qualquer pessoa com um mínimo de maturidade intelectual e emocional compreende que a liberdade de expressão, embora não seja absoluta (pois está limitada pelos direitos fundamentais alheios), sempre tem a possibilidade de provocar reflexão e, eventualmente, incômodo em pontos que são caros a determinados grupos da comunidade. Fugir à sensação descrita, tentando reescrever obras e calar humoristas, é a prova cabal da infantilização de parcela da sociedade. A dor, causada pela crítica ácida de comediantes e autores literários, ambos atuantes no campo da ficção e dentro dos limites constitucionais, é algo inerente ao crescimento dos indivíduos e, em última análise, essencial ao desenvolvimento intelectual e moral da coletividade. Nada melhor que concluir a reflexão com as palavras da figura ficcional criada por Bradbury e mencionada há pouco: “os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis.”



Elton Duarte Batalha é professor na Faculdade de Direito (FDir) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Advogado e Doutor em Direito.



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