Estima-se que o problema seja comum no Brasil, o segundo país que mais realiza cirurgias bariátricas no mundo (ilustração: Freepik*)
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – A hipoglicemia pós-prandial é uma das principais complicações da cirurgia bariátrica, podendo afetar até 30% dos operados. Ao contrário da hipoglicemia comum, em que o baixo nível de açúcar no sangue está geralmente associado a pouca alimentação, a pós-prandial ocorre depois das refeições, causando no indivíduo sintomas como sudorese, tremores, fraqueza e até confusão mental.
Estudo conduzido na Universidade Harvard, Estados Unidos, identificou o papel central da serotonina (hormônio envolvido na regulação do humor) no desenvolvimento da hipoglicemia pós-bariátrica. Os resultados foram divulgados hoje (12/09) no Journal of Clinical Investigation e, segundo os autores, indicam caminhos para possíveis tratamentos.
“Identificamos que esse tipo de hipoglicemia está associado à desregulação dos níveis de serotonina no sangue, hormônio que, além de controlar o humor, também é capaz de estimular a secreção dos hormônios insulina [no pâncreas] e GLP-1 [sigla para glucagon-like peptide-1, produzido no intestino delgado em resposta à ingestão de alimentos] no organismo”, conta Rafael Ferraz-Bannitz, que conduziu a investigação durante estágio no exterior apoiado pela FAPESP. O grupo também recebeu financiamento dos National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos.
“Observamos que, nos indivíduos com hipoglicemia pós-bariátrica, os níveis de serotonina estão baixos quando eles estão em jejum. No entanto, após uma refeição, aumentam significativamente, ao contrário de pacientes sem sintomas ou de pessoas que não fizeram bariátrica, cujos níveis de serotonina diminuem após uma refeição”, acrescenta Ferraz-Bannitz, que atualmente é pós-doutorando da Joslin Diabetes Center and Harvard Medical School.
Segundo o pesquisador, embora o problema seja comum – nos Estados Unidos, país com maior número de cirurgias bariátricas do mundo, estima-se que atinja até 30% das pessoas operadas –, ainda pouco se sabia a respeito dos mecanismos que desencadeiam a hipoglicemia pós-prandial. “É algo extremamente incapacitante, os pacientes chegam a concentrar os alimentos em apenas uma refeição por dia, pois sabem que vão passar muito mal. Muitos não conseguem trabalhar, dirigir ou ter o mínimo de qualidade de vida. E é um problema que pode atingir até 83 mil pessoas todos os anos só nos Estados Unidos. No Brasil, esse número também deve ser alto, pois é o segundo país que mais realiza cirurgias bariátricas no mundo”, sublinha o pesquisador.
Como foi feito
Os pesquisadores analisaram 189 metabólitos (compostos resultantes das reações enzimáticas do metabolismo) no sangue de três grupos de indivíduos: 13 pacientes com hipoglicemia pós-bariátrica; dez que realizaram a cirurgia, mas não tinham sintomas; e oito indivíduos que não realizaram a cirurgia nem tinham hipoglicemia.
O sangue foi coletado quando os participantes estavam em jejum, 30 minutos após tomarem um shake (composto por proteínas, carboidratos e lipídios) e duas horas após o consumo da bebida (tempo que geralmente os pacientes com hipoglicemia pós-prandial apresentam os sinais).
A análise mostrou alterações sobretudo no padrão de serotonina. “Para muitos metabólitos notamos diferenças significativas entre o grupo que desenvolveu hipoglicemia e aqueles assintomáticos. No entanto, a diferença no padrão de serotonina foi o que mais nos chamou a atenção. Indivíduos com hipoglicemia pós-bariátrica apresentavam níveis de serotonina muito diminuídos no jejum. Curiosamente, em resposta à refeição, houve um aumento de cinco vezes nos níveis desse hormônio nesses indivíduos”, conta Ferraz-Bannitz à Agência FAPESP.
Os pesquisadores encontraram ainda outras alterações metabólicas importantes. “Esses indivíduos, no estado de jejum, apresentavam diminuição nos níveis de dez aminoácidos, incluindo triptofano [precursor da serotonina], além de biomarcadores relacionados ao diabetes. Em contrapartida, notamos aumento nos níveis de cetonas, ácidos biliares e alguns metabólitos do ciclo de Krebs [que faz parte do processo de produção de energia nas células]”, relata.
Existe uma relação entre serotonina e a secreção de insulina e GLP-1. De acordo com Ferraz-Bannitz, estudos anteriores feitos in vitro já haviam demonstrado que a serotonina é capaz de estimular a secreção de insulina em células do pâncreas (beta-pancreáticas) e de GLP-1 nas células neuroendócrinas intestinais.
Vale destacar que a insulina é responsável pelo transporte do açúcar do sangue para as células do corpo, onde será usado como fonte de energia. Já o GLP-1 é um hormônio liberado na presença de glicose, dando sensação de saciedade ao sinalizar ao cérebro que o indivíduo está alimentado.
“Nesse estudo, demonstramos in vivo que a administração de serotonina em camundongos foi capaz de causar hipoglicemia induzida pelo aumento da secreção endógena de insulina e GLP-1”, comenta o pesquisador.
Dessa forma, os resultados sugerem que o aumento de serotonina após a refeição, observado nos indivíduos com hipoglicemia pós-bariátrica, pode ser um contribuinte para o aumento da secreção de insulina e, por consequência, o desenvolvimento da hipoglicemia e de sintomas como tontura, tremedeira e confusão mental.
Bloqueador de serotonina
Para entender melhor o papel da serotonina no desenvolvimento da hipoglicemia pós-bariátrica, foram feitos testes em camundongos. “Ao injetar serotonina nos animais, eles sofriam uma baixa vertiginosa da glicemia, induzindo a hipoglicemia – um quadro muito parecido com o dos pacientes. Ao avaliar o plasma dos camundongos, observamos que a injeção de serotonina aumentava a secreção de insulina e GLP-1, que são os mesmos hormônios aumentados nos indivíduos que desenvolveram hipoglicemia pós-prandial”, diz.
Os pesquisadores resolveram então testar, em camundongos, o uso de antagonistas de serotonina como uma estratégia de tratamento. “O uso de ketanserina, uma droga bem conhecida e bloqueadora dos receptores 2 de serotonina, se mostrou muito efetiva nos experimentos. Foi capaz de bloquear nos animais a hipoglicemia induzida por serotonina e promover a redução da secreção de insulina e de GLP-1. Trata-se, portanto, de um resultado promissor, que indica um potencial alvo terapêutico para indivíduos com hipoglicemia pós-bariátrica”, avalia.
Com os resultados, o grupo coordenado por Mary-Elizabeth Patti, professora da Harvard Medical School e investigadora sênior da Joslin Diabetes Center, pretende realizar novos estudos clínicos para comprovar a eficácia desse possível tratamento em indivíduos que sofrem de hipoglicemia pós-prandial.
Embora tenham demonstrado que a serotonina é um possível responsável por desencadear todo o processo de hipoglicemia em indivíduos que realizaram cirurgia bariátrica, os pesquisadores ainda não sabem o que causa essa diferença no padrão do hormônio.
“Essa é uma das limitações reconhecidas do estudo, pois não tivemos acesso a biópsias do intestino desses indivíduos para avaliar a quantidade e a atividade das células produtoras de serotonina. No entanto, uma das hipóteses que levantamos é que a hipoglicemia possa estar associada a alguma alteração na microbiota, ácidos biliares ou outros fatores no intestino – órgão que produz 90% da serotonina do organismo. Estudos futuros, que serão realizados no laboratório da professora Patti, poderão responder a essa incógnita”, diz Ferraz-Bannitz.
O artigo Postprandial metabolomics analysis reveals disordered serotonin metabolism in post-bariatric hypoglycemia pode ser lido em: www.jci.org/articles/view/180157.
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