Victor Ambros, da Universidade de Massachusetts, e Gary Ruvkun, de Harvard (ilustração: Niklas Elmehed/Nobel Prize Outreach)
Ricardo Zorzetto | Pesquisa FAPESP – Um achado grandioso realizado a partir do estudo de um verme diminuto, de menos de 1 milímetro de comprimento, rendeu a dois biólogos norte-americanos o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2024. Victor Ambros, da Universidade de Massachusetts, de 70 anos, e Gary Ruvkun, de 72, da Escola Médica de Harvard, ambas nos Estados Unidos, dividirão igualmente a premiação no valor de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 5,8 milhões) por terem descoberto os microRNA e o papel dessa família de pequenas moléculas na ativação e no controle dos genes.
Este é o segundo ano seguido em que o prêmio foi atribuído a pesquisas com a molécula de RNA, o ácido ribonucleico, que, entre outras funções, desempenha o papel de mensageiro químico no interior das células. Em 2023, o Nobel de Fisiologia ou Medicina foi para a bioquímica húngara Katalin Karikó e o médico norte-americano Drew Weissman, que tornaram possível o uso do RNA mensageiro na produção de vacinas, como algumas das que protegem da COVID-19.
O nome dos ganhadores de 2024 foi revelado na manhã de segunda-feira (07/10), em uma cerimônia na Suécia, por representantes da Assembleia do Nobel, o grupo de 50 pesquisadores do Instituto Karolinska que a cada ano define quem receberá a honraria nessa área. Antes de Ambros e Ruvkun, outros 227 pesquisadores foram agraciados com o mesmo Nobel desde 1901. Com seus estudos, Ambros e Ruvkun “descobriram um novo e inesperado mecanismo de regulação da expressão gênica”, afirmou o endocrinologista Olle Kämpe, vice-presidente da Assembleia do Nobel.
Os trabalhos que levaram a dupla norte-americana a ser homenageada com a mais consagrada das honrarias em ciências da vida começaram com a tentativa de responder a uma pergunta aparentemente simples: o que faz as células, a unidade mais fundamental dos seres vivos, assumirem formas e funções diferentes nos organismos multicelulares, como as plantas ou os animais?
No início dos anos 1990, Ambros e Ruvkun, de modo independente, começaram a buscar respostas investigando como funcionava a expressão dos genes em um dos mais simples e tradicionais modelos usados na biologia: o verme Caenorhabditis elegans. O nematoide tem um corpo cilíndrico e alongado, composto por cerca de mil células apenas. Elas, no entanto, originam diferentes órgãos e tecidos (intestinos, músculos e um sistema nervoso primitivo), de modo semelhante ao que ocorre com animais mais complexos.
Já fazia algumas décadas se sabia que o DNA, formado por duas fitas paralelas da molécula de ácido desoxirribonucleico, em geral armazenado no núcleo das células, guardava as informações necessárias para gerar um ser vivo desde o início. Essas informações estão codificadas nos genes, trechos de DNA contendo a receita de como fazer proteínas, moléculas longas e complexas que definem a forma e o funcionamento de cada célula – são as proteínas que determinam, por exemplo, se uma célula será esférica ou alongada, se será especializada em se contrair ou transmitir informações na forma de sinais elétricos. Também já era conhecido que todas as células de um mesmo organismo carregam o mesmo conjunto de genes e, desde os anos 1960, que determinadas proteínas aderiam a regiões específicas do DNA e facilitavam a leitura dos genes.
Estudos conduzidos desde meados do século passado indicavam que, no nível molecular, as células funcionavam de acordo com o seguinte dogma: quando um gene é ativado, a informação contida no DNA é transcrita para uma molécula de fita única de ácido ribonucleico (RNA), o RNA mensageiro, que é depois lido pela maquinaria celular que monta as proteínas. Apesar de os organismos terem um número elevado de genes, a diversidade é insuficiente para explicar a variedade e a complexidade das formas de vida encontradas no planeta – só para se ter uma ideia, cerca de metade dos genes de C. elegans que codificam proteínas são encontrados também em seres humanos. A explicação para a diversidade de formas, constatou-se mais tarde, dependia de mecanismos que regulam a ativação dos genes, como o descoberto por Ambros e Ruvkun.
Interessados em identificar como os genes eram ativados no momento e local certo para originar os diferentes tecidos do C. elegans, as equipes de Ambros e Ruvkun fizeram uma descoberta casual quase simultaneamente. Os pesquisadores verificaram que uma linhagem atípica do verme, que crescia de modo deformado, apresentava uma versão com mutação do gene lin-4. Eles também observaram que, nos exemplares saudáveis de C. elegans, o lin-4 produzia uma forma diferente de RNA. Em vez de gerar um RNA mensageiro contendo a receita de uma proteína, o lin-4 originava uma molécula de RNA mais curta, que se dobrava sobre si mesma e assumia o formato de um grampo de cabelo. E mais: os dois grupos viram que esse grampo aderia ao RNA mensageiro produzido por outro gene, o lin-14.
Publicados simultaneamente em 3 de dezembro de 1993 na mesma revista, a Cell, os dois trabalhos mostraram ainda que, quando o material genético do C. elegans apresentava a forma normal de lin-4 e lin-14, o verme se desenvolvia sem problemas. Já se o nematoide era portador do lin-4 alterado, havia percalços em seu crescimento provocado pelo excesso da proteína codificada pelo lin-14. Ambros e Ruvkun chegaram a propor que o pequeno RNA produzido pela versão saudável do lin-4 funcionaria como uma forma de regular em uma fase tardia a atividade do gene lin-14, mas, inicialmente, a ideia não recebeu muita atenção. “À época, ambos os grupos acharam que essa era uma peculiaridade do C. elegans e não investigaram em outros organismos”, conta o biólogo Paulo de Paiva Amaral, do Instituto de Ensino e Pesquisa Insper.
O cenário só mudaria anos mais tarde, quando Ruvkun e colaboradores publicaram um estudo na revista Nature mostrando que algo semelhante ao que se passava com o lin-4 também ocorria com o gene let-7, responsável por controlar outra etapa de desenvolvimento do nematoide. Dessa vez, no entanto, os pesquisadores demonstraram que esse fenômeno ocorria da mesma forma em uma grande diversidade de espécies, de animais marinhos, moluscos, peixes e insetos.
“Esse resultado abriu os olhos dos pesquisadores para o fato de que o RNA desempenha outras funções importantes. Além de carregar as instruções até a maquinaria celular que faz proteínas, ele também pode regular a ação de outros genes”, explica Amaral, coautor do livro RNA, the epicenter of genetic information, publicado em 2022 em parceria com John Mattick, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália. O trabalho de Ruvkun e Ambros originou um novo campo de investigações sobre o papel desses pequenos RNAs, chamados de microRNA, e de outras variedades dessa molécula.
“O fato de terem mostrado que esse é um fenômeno biológico preservado em diferentes espécies indica que ele desempenha um papel importante no desenvolvimento e no funcionamento dos organismos e, por isso, teria sido mantido ao longo da evolução dos seres vivos”, completa o biomédico Marcelo Mori, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que investiga o papel dos microRNA no envelhecimento e no surgimento de doenças crônicas, como o diabetes e a obesidade.
Estudos posteriores revelaram que, nas células, os microRNA atuam no controle da atividade dos genes: eles aderem a moléculas-alvo de RNA mensageiro e inibem as instruções carregadas por elas para a síntese de proteínas. Cada microRNA pode atuar sobre o RNA mensageiro produzido por muitos genes diferentes. “Os microRNA funcionam como o regente de uma orquestra”, explica Mori. “São eles que definem qual músico [gene] tocará, em qual momento e qual ritmo e intensidade. Eles fazem o ajuste fino da quantidade de proteínas que são produzidas pelas células, algo importante tanto para o desenvolvimento quanto para o funcionamento dos organismos.”
“Os microRNA regulam aproximadamente 60% dos nossos genes e são fundamentais para o controle de diferentes processos no organismo humano, como o desenvolvimento e as funções fisiológicas, entre elas a embriogênese e a morte celular, além da diferenciação, da proliferação e do crescimento das células”, explica a bioquímica Edilamar Menezes de Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), que estuda os efeitos do treinamento físico sobre RNAs não codificantes, como os microRNA, no sistema cardiovascular. “Essas moléculas também desempenham um papel importante na expressão e regulação dos genes em distúrbios neuronais, doenças cardiovasculares, alterações no sistema imunológico e no câncer”, conta a pesquisadora.
Nos últimos 20 anos, outros trabalhos mostraram que os microRNA podem ser transportados no interior de vesículas para outras células, regulando a expressão gênica delas. O fato de eles serem enviados para outras células e tecidos – e também viajarem no sangue – vem permitindo que sejam usados como indicadores de doenças como o câncer, ou de sua gravidade.
Após a descoberta dos microRNA em 1993, outra variedade de moléculas curtas de RNA, os RNA de interferência, foi identificada em 1998 pelos biólogos Andrew Fire e Craig Mello, achado que lhes valeu o Nobel de Medicina de 2006. Esse tipo de RNA também desempenha um papel regulatório ao destruir o RNA mensageiro originado de diferentes genes.
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