Espanha mostra que ignorar ciência para evitar “alarmismo” custa vidas
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por Natalia Pasternak
O mundo observa em choque enquanto o número de mortos na recente enchente registrada na Espanha, na região de Valência, ultrapassa os 200, com dezenas de desaparecidos. As chuvas que resultaram em inundações avassaladoras, destruindo moradias, empilhando carros nas ruas e espalhando morte e destruição causaram um dos maiores desastres naturais da história da Espanha. Mas será que as consequências do desastre, assim como da enchente no Sul do Brasil e do aumento da frequência de ciclones e furacões no mundo, podem ser consideradas “naturais”?
Em entrevista para a Revista Questão de Ciência, em maio deste ano, Jeffrey Schlegelmilch, diretor do Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade de Colúmbia, EUA, explicou que geralmente o risco de um desastre é calculado pelo perigo natural presente no ambiente, multiplicado pela vulnerabilidade da sociedade que o habita, dividido pela capacidade de resposta e recuperação. Schlegelmilch aponta que dois fatores desta equação (vulnerabilidade e recuperação) são humanos, e somente um (perigo natural), vem do meio. E ressalta que, com a atividade humana contribuindo para mudanças climáticas, o fator natural entra na esfera de influência humana.
Os casos recentes da Espanha e Brasil mostram que não somente precisamos fatorar as mudanças climáticas nesta equação, mas que a vulnerabilidade social pode ser bem mais catastrófica do que a natural. No caso de Valência, a ciência foi perfeita.
A agência meteorológica nacional (AEMET) emitiu o primeiro alerta cinco dias antes das chuvas. Na terça-feira, dia 29, emitiu um alerta vermelho às 7h30 da manhã. Segundo o jornal francês Le Monde, a agência ainda postou alertas em mídias sociais às 9h. Às 11h, outra postagem alertando para o risco de transbordamento do Rio Magro, o que de fato devastou várias cidades. Pouco depois do meio-dia, outro alerta avisava os moradores de Paiporta sobre a possibilidade de enchente na ponte Picanya no início da noite. A cidade tornou-se o epicentro da tragédia, com 40 mortos.
No entanto, os moradores só receberam o alerta oficial do governo, em seus celulares, às 20h.
Às 13h – quase seis horas depois do primeiro alerta dos cientistas, portanto – o presidente da região, Carlos Mazon, foi a público dizer que a tempestade estava passando. Somente às 16h o centro de coordenação de serviços de emergência foi convocado. Diversos outros veículos internacionais confirmam o cenário: a AEMET emitiu alerta vermelho às 7h30, mas o governo só alertou a população às 20h.
Prevenção de desastres dificilmente rende dividendos políticos. Se as autoridades impõem medidas de prevenção e o desastre não acontece, são atacadas. Se o líder político se omite, e o desastre acontece, é fácil culpar a natureza e focar na mitigação e resgate, posando de herói.
Em 2023, após alerta de chuvas fortes na região de Madri, a presidente regional Isabel Diaz Ayuso ativou o sistema de alertas que manda mensagem diretamente para os celulares das áreas de risco. As chuvas torrenciais aconteceram, mas fora da capital. Três pontes caíram e duas pessoas morreram. Como a cidade não sofreu muito, opositores denunciaram exagero e pediram “mais precisão” da AEMET, para não “prejudicar a economia”.
Com as mudanças climáticas impulsionando a frequência cada vez maior de secas, enchentes e doenças associadas, a relação dos governantes com a meteorologia precisa mudar: a “previsão do tempo” deixou de ser uma questão de pegar ou não guarda-chuva, virou questão de vida ou morte. Ignorar as mudanças climáticas e criar uma falsa dicotomia entre cautela e economia, como vimos também durante a pandemia de Covid-19, é receita de tragédia.
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