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segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

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Ideologia fantasiada de ciência

O uso da palavra “ciência” como bordão serve a interesses políticos

 

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Natalia Pasternak - Foto: Divulgação

Por Natalia Pasternak


 

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que altera o texto do artigo 5º da carta magna para garantir “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”. Alterar a letra da Constituição Federal desta maneira dá margem a interpretações que colocam em perigo o direito ao aborto nos casos em que é legal no Brasil (estupro, risco de vida da gestante e anencefalia fetal), além de proscrever a fertilização in vitro e a pesquisa com células tronco embrionárias. Se aprovada em definitivo, a mudança trará um retrocesso para a ciência e para os direitos da mulher.

 

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 73 milhões de abortos são provocados a cada ano. Aproximadamente 45% são classificados como inseguros, e destes, 97% ocorrem em países em desenvolvimento. Na África e América Latina, 75% dos abortos são inseguros. A OMS inclui o aborto seguro na lista de serviços essenciais de saúde. No Brasil, mesmo o aborto legal tem sofrido boicote, com diversos relatos de mulheres que tiveram o procedimento ilegalmente negado ou maliciosamente adiado.

 

Há quem defenda a mudança constitucional com a alegação de que “a ciência” diz que a vida começa na concepção. Essa é uma apropriação indébita da palavra ciência — que entra no argumento com a mesma legitimidade (e exercendo a mesma função) que o logotipo de grife de luxo em produtos falsificados.

 

Concepção, em termos biológicos, é um processo baseado em probabilidade. Não existe o “momento da concepção”, que parece ser um instante mágico e sagrado para quem tem mais amor por óvulos fertilizados do que por crianças vitimas de estupro. O processo de fertilização, que se inicia com o encontro de um espermatozoide com um óvulo, ocorre nas trompas, e pode ocorrer apenas vários dias após o ato sexual. Depois disso, o óvulo fertilizado ainda precisa percorrer mais um caminho e ser implantado no útero, processo com probabilidade de sucesso em torno de 50%, e que pode levar até uma semana. Neste meio tempo, como definir o “momento da concepção”? E se a Constituição disser que, a partir deste momento mágico indefinido, há uma pessoa humana dotada de direitos, como garantir esses direitos?? Devemos confinar as mulheres após o ato sexual para garantir que não coloquem a vida do talvez-embrião-fertilizado em risco? Abortos espontâneos, muito comuns no primeiro trimestre, serão investigados pela polícia como homicídio culposo?

 

Parece absurdo, não? Tão absurdo quanto a própria PEC, cuja aprovação inicial na CCJ não incomoda a maioria dos cidadãos razoáveis, firmes da convicção de que uma estultice dessa monta jamais será aprovada pelo plenário da Câmara, pelo Senado e nem sequer receberá sanção presidencial. O problema é que a história já nos mostrou o que acontece quando pessoas razoáveis confundem irrazoável com impossível . Foi assim com o Holocausto, com o Brexit, com a primeira eleição de Donald Trump. Eram coisas ridículas demais para acontecer, até que aconteceram. O sono da razão cria monstros, e a complacência dos ditos “calmos e racionais” liberta-os no mundo.

 

Durante a pandemia, muitas vezes me perguntaram se, no rescaldo da tragédia, a ciência sairia valorizada. Sempre respondi que, infelizmente, achava que não, mas que a grife “ciência” seria cada vez mais cooptada indevidamente em tentativas de manipulação política.

 

Quando se trata de controlar o feminino, a estratégia nem sequer é nova. No século XIX, havia o diagnóstico de “histeria” para mulheres que levantavam a voz. Chamar de “científico” o que é meramente misógino parece ser mais uma das tradições que o conservadorismo nacional empenha-se em preservar.

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