Talvez ninguém tenha compreendido tão bem a alma do Brasil profundo quanto Vítor Nunes Leal ao desvelar, em 1949, os mecanismos do coronelismo em seu clássico Coronelismo: Enxada e Voto. Hoje, o velho patrimonialismo ganhou um verniz de modernidade, mas a essência permanece tão brutal e cínica quanto antes. E não há obra que encarne melhor esse teatro de manipulação eleitoral do que o calçamento de ruas.
Nas cidades do interior, cujas origens são tão desordenadas quanto os passos de um bêbado às quatro da tarde, a urbanização é um remendo tardio. As moradias brotam antes da preparação do espaço urbano, e é aí que os demagogos de terceiro mundo encontram terreno fértil para suas tramóias. O calçamento vira a suposta “luta”, a “conquista” hercúlia do político que, generoso como um messias, oferece ao povo aquilo que já lhe pertence por direito.
E não pense o leitor que isso seja novidade. Leal já havia demonstrado como os coronéis faziam a sociedade acreditar que cada paralelepídedo assentado ou cada palmo de estrada aberta era fruto de sua luta pessoal, e não uma mera obrigação do poder público. Hoje, o patrimonialismo reencarnou nas emendas parlamentares, que nada mais são do que um esquema de compra de votos maquiado com o discurso de desenvolvimento. Deputados estaduais e federais negociam obras como quem troca figurinhas repetidas: “Eu voto no seu projeto; você libera o calçamento da minha base eleitoral.”
Mas até isso exige uma coreografia. Como ensinou Maquiavel, “Uma obra popular deve ser entregue aos poucos.” Sim, o calçamento não pode vir de uma vez; a mágica está na demora, no suspense, no “agora vai” que nunca vai totalmente. Cada metro quadrado concluído é motivo para discursos, faixas, selfies, e promessas de que “o resto já está no plano do próximo mandato.” O povo, refém das pedras, agradece de mãos juntas e coração apertado, como quem reverencia um milagreiro.
Mas como bem disse algum gênio anônimo da sabedoria popular: “Agradecer a político por obra pública é como agradecer ao caixa eletrônico por entregar o seu próprio dinheiro.” Essa é a grande tragédia: o que é direito vira favor; o que é dever vira benefício. E o povo, na sua generosa ingenuidade, perpetua o ciclo, aplaudindo os mesmos que o exploram.
O Brasil, no fundo, é um grande palco de tragicomédia, onde o patrimonialismo é a velha dama que se veste com novas roupas, mas nunca muda de papel. E o calçamento de ruas, esse totem do atraso, continua sendo o palanque onde os demagogos dançam sua valsinha de promessas, sob o olhar encantado de uma plateia que ainda não descobriu que o ingresso custa muito mais do que deveria.
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