No remoto ano de 2010, um venerando diplomata, já nonagenário, de nome Stépnhane Hessel, lançou ao mundo um manifesto – não desses que dormem nos escaninhos das repartições, mas um brado veemente à indignação cívica, à luta pela democracia e pelos direitos humanos. A Europa, senhora idosa e civilizada, escutou-o com o respeito devido aos seus patriarcas. Nós, porém, que habitamos este torrão, onde as cidades não se erguem sobre os alicerces da política, mas sobre o mando caprichoso dos coronéis, assistimos, de olhos espantados, ao novo escândalo do auxílio-alimentação para vereadores.
Convém lembrar – pois a memória, quando não exercitada, embota-se como lâmina ao tempo – que o salário de vereador é herança dos tempos de baioneta e silêncio. A Constituição, generosa para com seus filhos prediletos, fez-se mãe extremosa dessas Câmaras, nutrindo-as com um orçamento farto, ainda que a instrução pública se mantenha a pão e água.
O analfabetismo, esse mal insidioso, equipara-se a uma moléstia crônica. Seu médico, se lhe fosse concedida alguma cura, seria o professor. Mas se o enfermo se abrigar na Câmara de Caicó, aí estará o próprio morbus sentado em trono de couro e latim raso. Os vereadores, alheios a qualquer estatura moral, constroem-se na política à maneira dos que se erguem sobre o lodo – usando a miséria como ornato e a caridade interesseira como escada. Cesta básica já fez mais heróis no Brasil do que batalhas e leis. A canalhice, quando bem ensaiada, sempre permite posar de santo na farsa do sofrimento alheio.
Mas eis que agora desejam esses vereadores ostentar as regalias de juízes e promotores, cujos privilégios, bem se sabe, são dilatados. No entanto, se um edil de Caicó se aventurasse em um concurso de magistratura, arriscava-se a errar até o próprio nome.
Eis, pois, o absurdo em sua forma mais desabrida: que um vereador de Caicó aufira proventos superiores ao dobro do piso nacional dos professores, numa cidade onde os livros mofam nas prateleiras e as letras são privilégio de poucos. Há, decerto, algum descompasso na música do mundo, mas não serei eu quem endireitará a flauta torta da História.
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