Mulheres viajantes é um tributo à coragem de mulheres que, do século 4 ao 21, percorreram o mundo sozinhas - Blog A CRÍTICA

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terça-feira, 8 de abril de 2025

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Mulheres viajantes é um tributo à coragem de mulheres que, do século 4 ao 21, percorreram o mundo sozinhas

A autora portuguesa Sónia Serrano reúne histórias de religiosas, escritoras, cientistas e aventureiras que desafiaram as convenções de suas respectivas épocas. A edição brasileira, que sai pela editora Tinta-da-China Brasil, inclui um capítulo inédito sobre a navegadora Tamara Klink

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Divulgação/Tinta-da-China Brasil Mulheres viajantes, de Sónia Serrano


O novo lançamento da Tinta-da-China Brasil chega às livrarias celebrando a coragem de mulheres que viajaram sozinhas, desbravando o mundo e a si mesmas. Por meio de histórias fascinantes, a autora portuguesa Sónia Serrano revisita séculos de aventuras, registros e descobertas.

As dezenove exploradoras lembradas no livro não apenas romperam com os estereótipos de mulher de seu tempo, mas também mapearam terras desconhecidas, descobriram espécies botânicas, contribuíram com avanços médicos e deixaram um legado nos campos da arqueologia e da geopolítica, entre outros feitos. Na obra, que já nasce um clássico da literatura de viagem, Sónia oferece uma nova perspectiva. As mulheres escreveram relatos bem-humorados, argutos, sensíveis, e observaram ambientes aos quais os homens não tinham acesso.

A obra está dividida em duas partes. Na primeira, a autora reúne e contextualiza os elementos comuns entre os relatos das viajantes. Os perigos que enfrentavam, as malas que levavam, as dinâmicas de alimentação, questões de segurança, higiene e acomodação. Já os capítulos da segunda parte são dedicados a apresentar individualmente a trajetória e o legado de cada uma dessas viajantes.

Mulheres viajantes que fizeram história

No século 4, Egéria partiu da Península Ibérica rumo à Terra Santa. Seus relatos são os primeiros escritos de viagem deixados por uma mulher de que se tem notícias. Além disso, o conjunto de seus textos é de grande importância histórica. Redigidos em latim vulgar, o que era surpreendente para o período, eles fornecem pistas da evolução das línguas românicas e registram detalhes preciosos do início do cristianismo em Jerusalém.

Entre os séculos 16 e 17, Catalina de Erauso abandonou o convento e a vida religiosa, assumiu uma identidade masculina e viajou pela América do Sul, servindo nas forças militares espanholas no Chile e no Peru. Apresentar-se como homem, aliás, foi um recurso utilizado por muitas das andarilhas.

Durante suas andanças por Constantinopla (hoje Istambul) no século 18Mary Wortley Montagu (1689‐1762) entrou em contato com a inoculação do vírus da varíola praticada pelos turcos. Ela levou a técnica para Inglaterra e a apresentou aos membros da realeza local. Embora a descoberta da vacina seja atribuída a Edward Jenner (1749‑1823)Sónia Serrano defende que é preciso honrar a memória de Lady Montagu como a verdadeira precursora do tratamento na Europa Ocidental.

A flor popularmente conhecida como primavera foi catalogada no Brasil em 1767 por uma mulher, Jeanne Baret (1740-1807), naturalista e botânica francesa. A descoberta se deu em uma expedição científica da qual Baret participou clandestinamente, disfarçada de homem e trabalhando como assistente de seu amante Philibert Commerçon. Commerçon tomou os créditos pela descoberta e decidiu batizar a planta de Bougainvillea brasiliensis, em referência a Louis de Bougainville, líder da expedição.

Lady Hester Stanhope (1776-1839) teve uma vida digna de personagem de mitologia grega. Inglesa, frequentadora da alta sociedade e dos círculos intelectuais, conheceu o poeta Lord Byron, arrasou corações, foi exilada, percorreu o Oriente e foi coroada rainha na cidade de Palmira, na Síria. Tudo isso depois de completar trinta anos, o que no século 19 era sinônimo de fim da linha para uma mulher. De tão fascinante, tornou-se personagem de outro livro: o grande clássico modernista Ulysses, de James Joyce. O artista espanhol Pablo Picasso também a admirava, tendo afirmado que Lady Stanhope representou o verdadeiro modelo de mulher livre.

Jane Dieulafoy (1851‐1916) e seu marido participaram da primeira expedição científica organizada. Percorreram o Oriente Médio e trouxeram para a França o friso dos arqueiros e o capitel de uma coluna do Palácio de Dário I (ou Castelo de Tachar), construção do Império Aquemênida (510-330 a.C.) localizada em Persépolis, na Pérsia, região do atual Irã. Os dois itens podem ser vistos no Museu do Louvre.

As proezas de Gertrude Bell (1868-1926) lhe renderam a cinebiografia Rainha do deserto (2015), dirigida por Werner Herzog e protagonizada por Nicole Kidman. No final do século 19, ela foi a primeira mulher a se formar em história contemporânea em Oxford. Fascinada pelo Oriente Médio, ela mapeou algumas de suas regiões, corrigindo muitas informações e sendo figura-chave na geopolítica durante as divisões de terras que formaram as atuais nações da região. Foi pioneira ao redigir uma lei considerando que os objetos escavados deveriam permanecer no Iraque e, como último projeto, criou o Museu do Iraque, em 1926. Foi confidente e consultora de reis, presidentes e dirigentes mundiais, como Winston Churchill. Além de destacada funcionária de Estado, Bell trabalhou em várias áreas ao longo de sua vida. Foi poeta, tradutora, fotógrafa, arqueóloga, cartógrafa, alpinista, jardineira e linguista, entre outras atividades que exerceu, sempre reconhecida por seu brilhantismo.

Dos séculos 20 e 21, a autora conta as histórias de quatro viajantes. A jornalista e escritora inglesa Jan Morris (1926-2020) começou como repórter por acaso, enquanto servia no exército britânico antes da Segunda Guerra Mundial. Desde então, percorreu o mundo como correspondente internacional, desbravando os Estados Unidos, a Índia e o Oriente Médio, deixando um legado de mais de quarenta livros. Já a irlandesa Dervla Murphy (1931-2022) preferia a bicicleta como meio de transporte. Ela escreveu um livro sobre o trajeto que fez de sua terra natal até a Índia sobre duas rodas. A jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho (1967), conterrânea da autora Sónia Serrano, registrou impressões sobre a Faixa de Gaza, o Afeganistão, o México e o Brasil. A caçula da turma é a navegadora Tamara Klink (1997), a primeira mulher a invernar no Ártico. O capítulo dedicado a ela foi escrito exclusivamente para a edição brasileira.

Este livro é mais do que um convite à leitura dessas mulheres; é um tributo à coragem e ao espírito aventureiro daquelas que ousaram sonhar e realizar. Ideal para quem busca inspiração, conhecimento e uma nova perspectiva sobre a história da humanidade e da literatura de viagem.

Sobre a autora
Sónia Serrano nasceu em Lisboa, é formada em direito e mestre em estudos literários, culturais e interartes na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Dedica-se ao estudo da literatura espanhola e hispano‑americana. Fez crítica literária no Jornal de Letras e participou em diversas publicações de poesia. Em 2010, integrou a curadoria da exposição Autorretratos do Mundo, no Museu Berardo, e em 2015 da exposição No Fim de Todos os Caminhos, na Flup 2024, sobre a escritora, jornalista e viajante Annemarie Schwarzenbach. Coorganizou o colóquio internacional Annemarie Schwarzenbach: Uma Viajante pela Palavra e pela Imagem, no Instituto Franco‑Português. Participou como representante de Portugal na conferência Cross-Border Conversations: European and Indian Women Writers, realizada em Nova Delhi, em 2015, entre outras conferências ligadas à literatura de viagens. Participou como keynote speaker no Congresso Internacional Fotografia e Viagem, realizado no Funchal, em 2019.

Sobre a Tinta-da-China Brasil
É uma editora de livros independente, sediada em São Paulo, gerida desde 2022 pela Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos. Sua missão é a difusão da cultura do livro.


Trechos do livro

A autora Sónia Serrano sobre o espírito da literatura de viagem

A literatura de viagens não tem de explicar ou esclarecer um lugar, mas tem de nos dizer o que sentiu quem escreveu. Se for realmente boa, vai impelir‑nos a partir.

Viagem = tortura?

A viagem é um assunto sério. Etimologicamente, em inglês travel deriva do francês travail, que por sua vez tem origem no termo latino tripalium, que designa um instrumento de tortura. De facto, não é fácil viajar: na melhor das hipóteses, e mais uma vez citando Theroux, viajar significa “perder a inocência”, perder o nosso conforto, as nossas referências, partir muitas vezes rumo ao desconhecido.

O Instagram é o novo caderno

Mas, de facto, no século xix assiste‑se à explosão da narrativa de viagem feita por mulheres, mercê de uma expansão generalizada do género, conforme atestava o médico Henry Holland em carta à sua amiga escritora e viajante Maria Edgeworth (1768‑1849): “Hoje em dia ninguém viaja sem escrever um caderno para dizer ao mundo por onde andou e o que viu.”

 Direitos conquistados com o direito de viajar

Vimos como o ato de viajar foi permitindo ou abrindo caminho para que as mulheres adquirissem alguns direitos. Poder sair de casa, conhecer o mundo, mudar o vestuário tradicional, foram desenvolvimentos que a viagem ajudou a introduzir. Um outro, especificamente relacionado com os meios de transporte, se deve acrescentar a esta lista: montar a cavalo como os homens. Nenhuma importância se dá hoje ao tema, homens e mulheres utilizam as mesmas selas e montam exatamente da mesma maneira, mas nem sempre foi assim. Até bem avançado o século xx, mulheres houve que montaram sempre à amazona, isto é, com as duas pernas de um lado da sela, especificamente concebida para esse fim. Montar de outra forma era considerado impudico e escandaloso.

Jeanne Baret

Foi precisamente no Brasil que um espécime até então desconhecido chamou a atenção do olhar aplicado de Baret, não tanto pelas suas chamativas folhas, mas pela natureza das suas vagens, que achou semelhantes a algumas conhecidas em França. A descoberta foi, claro, atribuída a Commerçon, que, procurando cair nas boas graças do chefe da expedição, batizou a descoberta como Bougainvillea brasiliensis. E assim chegaram até nós as esplêndidas buganvílias.

Gertrude Bell

Bell marcou decisivamente a geografia do Médio Oriente tal como a conhecemos agora. Participou como uma das maiores especialistas sobre aquela região na Conferência de Paris de 1919, no rescaldo da Grande Guerra, bem como na Conferência do Cairo de 1921, convocada por Churchill, na altura secretário de Estado das Colónias, para decidir sobre a política britânica naquela região. É já célebre a foto em que aparece entre Churchill e Lawrence, todos montados em camelos, tendo como cenário de fundo a Esfinge.

 Karen Blixen em uma referência cinematográfica

E claro, o incontornável Denys Finch‑Hatton, grande amor da vida da baronesa. Mas desengane‑se quem pensa encontrar no livro o mesmo fulgor arrebatado e sentimental do filme que Sydney Pollack levou ao grande ecrã em 1985, com o marcante par romântico Meryl Streep e Robert Redford.

 Clarice Lispector sobre as dificuldades de viajar

Clarice Lispector, essa aventureira tão avessa à viagem, escreveu numa carta de Argel: “Eu conhecia melhor uma árabe com um véu no rosto quando estava no Rio”.

 Cecília Meireles

O Brasil pode‑se orgulhar de ter uma grande escritora e viajante que, de alguma forma, se pode considerar precursora das narradoras viajantes atuais, o seu nome: Cecília Meireles, para quem “Viajar é uma outra forma de meditar”. Nascida bem no início do século xx, em 1901, no Rio de Janeiro, durante os 63 anos que durou a sua vida foi, sobretudo, notória como poeta e escritora, não sendo a sua faceta de mulher viajante muito reconhecida.

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