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quarta-feira, 23 de abril de 2025

O Livro e o Espelho




Num desses dias em que o céu da alma se tolda com nuvens de inutilidade, dei de arrumar a estante. É um ofício ingrato — como tentar persuadir um político da existência da moral pública — mas que às vezes nos revela segredos tão antigos quanto nós mesmos. Foi assim que deparei com um velho volume de páginas amareladas, capa de tecido puído e cheiro de saudade: Dom Quixote.


Abri-o ao acaso, como quem pede um conselho ao oráculo, e lá estava ele — o cavaleiro da triste figura — com sua lança contra os moinhos de vento. Sorri com um quê de ternura. Cervantes, esse outro encantador de palavras, morreu num 23 de abril, o mesmo dia em que Shakespeare, dizem, também se despediu da Terra. Desde 1995, a UNESCO resolveu, com justiça e atraso, consagrar a data ao livro. Fez bem. Se os homens não podem ser iguais na fortuna, ao menos o são quando leem a mesma página.


Mas não pense o leitor que este cronista é dado a efemérides. Nunca tive muita fé nas datas: elas se repetem, mas os gestos rareiam. O que me comove não é o dia em si, mas a cena silenciosa de alguém que, ao abrir um livro, abre também a alma. O livro — esse espelho mágico — não nos mostra apenas o que somos, mas o que poderíamos ter sido, caso não nos faltasse coragem, tempo ou imaginação.


Lembro-me de um sujeito, certa vez, que me disse com ar de superioridade: “Leio pouco, mas penso muito.” E eu, que sou dado a pensar com a pena na mão, respondi: “Pois eu leio muito, para pensar melhor.” Não houve réplica. O homem calou-se, talvez por falta de leitura ou excesso de vaidade.


A verdade, caro leitor, é que o livro é um amigo severo: exige silêncio, atenção e humildade. Diferente do jornal, que se lê com os olhos, o livro pede também o coração. Aquele nos informa — este nos transforma.


Neste 23 de abril, que cada um, em vez de postar frases feitas ou selfies com capas coloridas, possa simplesmente abrir um livro — e com ele, abrir-se. Pois enquanto houver quem leia, haverá quem resista. E resistir, nesta época em que se vende a alma a retalhos, é talvez o mais nobre dos atos.

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