Crônica de um País a Construir (ou a Destruir) - Blog A CRÍTICA

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quinta-feira, 1 de maio de 2025

Crônica de um País a Construir (ou a Destruir)



Há, no Brasil interiorano — esse vasto coração da pátria, onde o trem da modernidade apenas apita de longe —, um fenômeno curioso, digno de nota entre sociólogos e romancistas, embora pouco afeito a reformas ou revoluções. Falo do aleijão cívico, essa anomalia política que cresce sob o sol ardente das pequenas cidades, qual erva daninha em jardim de praça pública esquecida.


Lá, onde as cigarras fazem mais barulho que os debates públicos, não há cidadania como exercício de razão e liberdade. O que há, se muito, é um comércio disfarçado de lealdade. Cidadania, naquele sertão de silêncios e favores, não se exerce: negocia-se. Ninguém vota por ideias, vota-se por empregos. Promete-se o cargo à filha, o remédio à avó, o caminhão-pipa à rua de barro — e assim se conquista o mandato.


O prefeito, nessa paisagem, é mais feitor do que representante; mais pai do que servidor. Governar ali é uma arte doméstica, com cheiro de fogão a lenha e contratos em papel de pão. A prefeitura, por sua vez, converte-se em arca de Noé dos desamparados: não porque salve, mas porque afunda com todos dentro, e ninguém ousa abandoná-la.


Ah, mas não se culpe apenas o presente! Esse espírito antirrepublicano tem berço antigo. A política interiorana nasceu debaixo da espingarda do coronel, cujo argumento sempre foi mais eloquente que qualquer Constituição. Quem opinava, morria. Quem obedecia, herdava a estrada de chão. Assim, a cidadania nunca nasceu: apenas sobreviveu, entre um favor e outro, como criança enjeitada à porta de um casarão.


No Brasil, diga-se com pudor e ironia, ninguém deseja ser igual. Igualdade por aqui é sinônimo de fraqueza. Cada um quer ser algo mais — nem que seja amigo de um figurão. É por isso que não temos apenas juízes, temos desembargadores; não apenas funcionários, mas excelências. A distinção é o oxigênio da desigualdade, e o prestígio vale mais que a lei.


Se me perguntam se o povo se organiza, respondo com pesar: apenas no carnaval. E talvez nem isso mais. Tudo o mais — greves, protestos, conselhos — soa artificial como paletó em pescador. O único bloco realmente unido no Brasil sempre foi o da espera: espera por um favor, por um padrinho, por um milagre.


E enquanto todos querem ser governo, ninguém ousa ser oposição. E, quando não há oposição, restam as panelinhas. E quando as panelinhas crescem, viram quadrilhas. E quando viram quadrilhas, temos... o Brasil de sempre.


Destruí-lo, dizem alguns. Reconstruí-lo, ousam outros. Mas talvez devêssemos apenas olhá-lo — com a ternura de quem observa um velho doente, teimoso, que ainda se julga moço, mas já não lembra onde guardou os próprios remédios.

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