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domingo, 9 de novembro de 2025

As Facções Criminosas e a Lógica do Pertencimento no Brasil

Marco Zero


As facções criminosas no Brasil compreenderam, talvez melhor do que o próprio Estado, a força simbólica da necessidade humana de pertencimento. Não é por acaso que indivíduos se agrupam em torno de times de futebol, associações ou movimentos sociais: há na experiência coletiva uma âncora psicológica e identitária. Muitos jovens das periferias urbanas, desprovidos de perspectivas e, frequentemente, de reconhecimento social, encontram nas facções um simulacro de comunidade — um espaço de acolhimento, proteção e sentido.


Mesmo em um país que, nas últimas décadas, ampliou o acesso à educação, parte significativa dessa juventude não consegue converter oportunidade em mobilidade. O resultado é uma adesão simbólica — e, muitas vezes, concreta — a organizações criminosas que se apresentam como alternativa ao vazio existencial e institucional deixado pelo Estado.


Em 2006, o Primeiro Comando da Capital (PCC) demonstrou de maneira contundente a extensão de seu poder, paralisando São Paulo por dias com uma série de ataques coordenados. A ação não surgiu do nada: o PCC havia aperfeiçoado táticas herdadas do Comando Vermelho (CV), organização carioca muito mais antiga, nascida nas masmorras da ditadura militar nos anos 1970. O CV foi pioneiro na fusão entre o mundo prisional e o tráfico de drogas nas favelas, criando uma estrutura organizacional que sobreviveria a décadas e inspiraria o modelo paulista.


A ascensão das tecnologias de comunicação, especialmente dos telefones celulares, acelerou essa expansão. Mas, como o Comando Vermelho demonstrou, os elementos essenciais da reprodução do poder criminoso não estão na tecnologia em si, e sim em algo mais profundo: o compartilhamento de códigos, a disciplina interna e um sistema de lealdade que sobrevive à prisão. Dentro dos presídios, vigora uma “justiça paralela” que pune com rigor quem desafia a hierarquia. “O que você faz aqui fora”, disse um ex-traficante carioca, “você vai ter que responder por isso lá dentro”.


Não é, portanto, surpreendente que redes criminosas baseadas nas prisões continuem a se expandir. Em 2013, Santa Catarina — um estado até então visto como símbolo de prosperidade e tranquilidade — foi palco de ataques violentos atribuídos ao Primeiro Comando de Santa Catarina, facção fundada por detentos que haviam passado por presídios dominados pelo PCC. Situações semelhantes ocorreram em diversos estados brasileiros, incluindo o Rio Grande do Norte, onde a sangrenta rebelião de Alcaçuz revelou a força e a brutalidade dessas organizações.


Pesquisas recentes mostram como as facções subvertem a lógica do encarceramento. Primeiro, impõem uma ordem própria no interior das prisões — uma espécie de “governo paralelo” que fornece proteção e estabelece regras de convivência em um ambiente marcado pelo caos institucional. Paradoxalmente, esse controle reduz a violência interna, como ocorreu em São Paulo, mas ao custo de consolidar o poder das organizações sobre o sistema prisional.


Em segundo lugar, as facções projetam seu poder para fora das muralhas. Mantêm fidelidade entre egressos e entre aqueles que, mesmo em liberdade, vivem sob a expectativa de um dia serem presos. Essa lealdade funciona como um elo entre o crime organizado nas ruas e o poder invisível dos líderes encarcerados. Em alguns casos, as facções são capazes de impor “códigos de conduta” que reduzem as taxas de homicídio — como a chamada “Lei do Crime” — ou negociar tréguas, como ocorreu com as maras centro-americanas em El Salvador. Tais práticas ampliam seu poder de barganha diante do Estado, que, em troca da redução da violência, cede, ainda que tacitamente, parcelas de soberania.


As políticas de encarceramento em massa, ao invés de enfraquecer as facções, frequentemente as fortalecem. Cada novo preso é um potencial recruta; cada cela superlotada, um laboratório de poder paralelo. O Estado, ao punir indiscriminadamente, alimenta a própria estrutura que pretende destruir.


O desafio, portanto, exige inteligência e não apenas repressão. É preciso distinguir os líderes que comandam as redes criminosas daqueles que nelas ingressaram por coação ou sobrevivência. Políticas penais mais racionais — com penas mais curtas e fiscalizadas para delitos menores, e presídios menores, mas melhor monitorados — podem romper o ciclo de obediência que se perpetua atrás das grades.


Sem isso, continuaremos a assistir à paradoxal vitória da criminalidade sobre o próprio sistema que deveria contê-la.

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