Há provocações que não se fazem impunemente — mas algumas são necessárias. E poucas são tão necessárias quanto esta: a melhor cantora de forró da atualidade nasceu em São Paulo. A frase soa como heresia para quem acredita que o forró é um clube fechado, um condomínio vigiado por porteiros imaginários que controlam quem pode ou não empunhar a sanfona simbólica da cultura nordestina. Mas a realidade — teimosa, implacável — insiste em contrariar o mito.
Flávio José, um dos últimos grandes guardiões do forró, já havia alertado para o paradoxo: quem vai salvar o forró é São Paulo e a Europa. Não era boutade, nem exagero. Era diagnóstico. Porque a lenta sabotagem da música regional nasceu dentro de casa, no próprio Nordeste, quando parte de sua juventude decidiu sentir vergonha do ritmo que os formou, e quando a febre da lambada invadiu o Ceará nos anos 1980 travestida de “forró”. Naquele momento, não só o nome foi sequestrado — mas o repertório, a estética e a sensibilidade. A partir dali, instalou-se uma homogeneização sonora que transformou um ecossistema rico, plural, inventivo — xote, xaxado, baião, arrasta-pé — em uma massa genérica, sem nuances nem identidade.
E é justamente aí que entra Mariana Aydar, paulistana, herdeira de uma linhagem musical que passa por Dominguinhos, Luiz Gonzaga e Lulu Santos. Não por coincidência: sua mãe, a produtora Bia Aydar, trabalhou com esses nomes, e a menina cresceu entre bastidores, estúdios e palcos onde se discutia música com seriedade — não com algoritmos. Quando Mariana chegou ao forró, não o fez por oportunismo nem por exotização: o fez com entendimento profundo, com afeto histórico e rigor artístico.
E, sem alarde, tornou-se a voz mais consistente, elegante e tecnicamente superior do forró contemporâneo.
Enquanto isso, grande parte da produção forrozeira no Nordeste permanece presa à armadilha iniciada nos anos 1980: chamar lambada de forró, pop eletrônico de forró, e qualquer batida de teclado repetitiva como se fosse descendente direta de Gonzaga e Sivuca. O problema nunca foi modernizar — o problema foi nivelar por baixo.
O forró precisava — e ainda precisa — ser renovado, mas não substituído. Não é modernização transformar baião em tecnomelodia. Não é evolução suprimir sanfona, zabumba e triângulo para dar lugar a uma estética de festa genérica que poderia tocar em qualquer esquina do mundo sem ninguém dizer: “Isso é Nordeste”. Modernizar não é apagar. Inovar não é renegar.
Mariana Aydar compreendeu isso com uma clareza que hoje muitos artistas nordestinos parecem ter perdido: a modernização só é válida quando preserva o espírito da tradição. Sua obra, desde “Kavita” até o premiado “Veia Nordestina”, mostra o que acontece quando uma artista trata o forró como linguagem e não como pretexto; como herança viva, e não como rótulo de mercado.
E eis o paradoxo final — tão incômodo quanto verdadeiro: hoje, quem melhor honra o forró não nasceu em Caruaru, Campina Grande ou Juazeiro, mas em São Paulo.
Isso não diminui o Nordeste. Pelo contrário: o engrandece, porque prova que sua música é grande o suficiente para atravessar fronteiras sem perder densidade. Mas também revela uma ferida aberta: enquanto parte do Nordeste insiste na caricatura, o forró mais sofisticado e respeitoso está florescendo em outras coordenadas geográficas.
Quem quiser se zangar, que se zangue. Mas antes, escute Mariana Aydar — com atenção. E depois tente, sinceramente, dizer que o forró contemporâneo tem voz melhor do que a dela.



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