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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A nota dos clubes militares e o vezo do lobo



Por José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP


  • Ao divulgar uma nota intitulada Injustas prisões, que trata da decisão que levou o ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns militares estrelados a serem condenados à prisão por sua tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023, a chamada Comissão Interclubes Militares perdeu uma excelente oportunidade de permanecer calada. Essa entidade é constituída por militares aposentados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, muitos dos quais endossaram as críticas absurdas e improcedentes feitas por Bolsonaro em discursos pronunciados nas comemorações de datas cívicas.
  • Entre outros argumentos, os membros dos clubes militares invocaram a importância do voto do ministro Luiz Fux, o único dos integrantes da primeira turma da corte que não acolheu as punições pedidas pelo procurador-geral da República. Tomando o cuidado de afirmar que estavam se “posicionando contra o STF” e não fazendo “um ataque às instituições”, os militares da reserva disseram que, ao não refutar a fala de Fux “com rigor”, os demais ministros agiram sem “ponderação adequada”. Por esse motivo, esquecendo-se de que um tribunal superior pressupõe que as decisões de um colegiado sejam tomadas por maioria de votos, alguns membros dos clubes militares chegaram a afirmar que o voto de Fux deveria ter prevalecido por ser “melhor” do que os outros.

  • O documento do Conselho Interclubes Militares assevera ainda que o comportamento dos ministros que votaram pela condenação dos acusados não teria, por um lado, contribuído “para o fortalecimento da Justiça”. E, por outro lado, teria “comprometido a percepção pública de equilíbrio, proporcionalidade e segurança jurídica”. Discordar da decisão da primeira turma significa “reafirmar que decisões que afetam diretamente a liberdade dos indivíduos devem ser tomadas com total observância ao devido processo legal, especialmente quando há apontamentos relevantes sobre possíveis falhas analíticas na análise dos fatos ou na interpretação jurídica aplicada”, afirma o documento divulgado pela Comissão Interclubes Militares.

  • Como se tivessem “notável saber jurídico”, uma das condições impostas pela Constituição para quem for indicado a uma das 11 vagas do Supremo, o documento conclui com uma afirmação tortuosa e sem base legal. Ele afirma que a contestação à prisão dos generais Augusto Heleno, Walter Braga Neto e Paulo Sérgio Nogueira e do almirante Almir Garnier determinada pela corte não apenas é legítima, mas necessária. “Trata-se de defender a credibilidade das instituições e a integridade do próprio processo judicial. É assim que se constrói justiça sólida, respeitosa e verdadeiramente republicana.”

  • Esses argumentos são contraditórios. Afinal, quem fala em justiça republicana e declara que “a prisão imediata, diante de um processo cuja condução foi alvo de críticas técnicas consistentes transmite a sensação de que etapas essenciais de revisão e ponderadas”, é gente que também bateu bumbo às investidas antidemocráticas de Bolsonaro e dos militares que ocupavam cargos estratégicos em seu governo e que aplaudiram sua inconsequente verborragia antidemocrática nas comemorações de datas cívicas durante os quatro anos de seu governo.

  • Na verdade, tanto os militares vinculados à cúpula do governo Bolsonaro quanto os militares aposentados do Clube Naval, do Clube da Aeronáutica e do Clube Militar, que sempre endossaram as falas do então presidente, pecam pela manipulação dos fatos, pelo enviesamento ideológico e pelo corporativismo. De que modo levar a sério quem ainda hoje não esconde o saudosismo de anos sombrios, como foi evidenciado paralelamente ao julgamento do STF pela crítica do brigadeiro Carlos Amaral Oliveira, ministro do Superior Tribunal Militar, à presidente da corte, Elizabeth Rocha, por ter pedido desculpas às vítimas da ditadura em nome da Justiça Militar, no discurso que fez no ato inter-religioso por ocasião dos 50 anos de morte do jornalista Vladimir Herzog? “Ela deveria estudar um pouco mais de história para opinar sobre a situação do período histórico a que se referiu e sobre as pessoas a quem pediu perdão” – disse o brigadeiro.

  • O período histórico mencionado por esse brigadeiro é, evidentemente, o relativo aos anos sombrios a que me refiro. Ou seja, é o período em que as liberdades fundamentais foram suprimidas e a democracia acabou sendo substituída por uma ditadura militar, deflagrada, entre outros. Esse foi um período em que a imprensa foi censurada. Em que líderes estudantis, cientistas, professores universitários foram cassados e exilados. Em que cerca de 434 pessoas desapareceram, depois de terem sido torturadas e assassinadas em dependências policiais e militares. Em que a ditadura agia com base no princípio de que a suposta nobreza seus fins justificariam os meios arbitrários por ela utilizados.

  • Como o lobo perde o pelo mas não o vezo, é preciso avaliar o documento da Comissão Interclubes Militares não pelo seu valor de face, mas com alguma perspectiva histórica. Nos tempos mais recentes, a narrativa do bolsonarismo e dos militares que o apoiaram sempre foi no sentido de que o País estaria vivendo sob uma ditadura judicial desde janeiro de 2023, o que é inverídico. Segundo esses militares, igualmente, não foram vândalos e extremistas que atentaram contra o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF no dia 8 de janeiro de 2023, mas cidadãos que apenas teriam exigido o respeito… à Constituição.

  • São afirmações absurdas, se as interpretarmos com o olhar voltado para um passado um pouco mais longo. Lembro as décadas de 1960 e 1970, período em que os militares passaram a acreditar que detinham um poder moderador nos mesmos moldes do que fora previsto pela Constituição outorgada em 1824. A partir daí, foi essa crença improcedente, ilegítima e farsesca que lhes permitiu, ao longo dos dois últimos séculos, desestabilizar as instituições quando seus interesses, vontades e pretensões não eram atendidos.

  • A mesma crença esteve presente pouco mais de um século e meio depois, quando os militares pressionaram a Assembleia Constituinte de 1988 a incluir na Constituição o artigo 142. Imposto por pressão do então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, esse artigo é deliberadamente vago, o que permite às Forças Armadas o interpretarem como bem entenderem, invocando o poder de intervir nas instituições e na sociedade sob a justificativa de “garantir a lei e a ordem”. No limite, com base no que os juristas chamam de “interpretação extensiva”, esse artigo admitiria implicitamente até mesmo a imunidade vitalícia contra processos judiciais movidos contra militares por abuso de poder na promoção dessa “garantia”.

  • Os riscos implícitos no artigo 142 da Constituição são extremamente perigosos para um regime democrático e para as liberdades fundamentais e os direitos políticos dos cidadãos. Basta lembrar que, nos planos golpistas de 2023 para abolir o Estado de Direito por meio da violência, estavam previstos – entre outras medidas torpes – os assassinatos do presidente da República, do vice-presidente e de um ministro do Supremo – justamente relator do processo que apurava as responsabilidades de Bolsonaro e de seu entorno militar.

  • Por isso, ao afirmar que “a contestação à prisão de militares, diante de argumentos judiciais tão bem expostos (pelo ministro Fux), é não apenas legítima, mas necessária”, o documento dos clubes militares carece de autoridade e de credibilidade. Por mais ensaboado que o texto tenha sido escrito, ao desprezar a maioria da primeira turma do Supremo e ao valorizar o voto derrotado como o único que propiciaria segurança jurídica ao País, esses militares deixaram claro que continuam pensando como no passado – mais precisamente, em 1824 e em 1964.

  • Não é assim, para usar as palavras do próprio documento dos militares aposentados, que “se constrói justiça sólida e verdadeiramente republicana”. É por isso que eles só teriam a ganhar se tivessem ficado calados. Ao lançar essa nota, eles apenas demonstraram que o ditado popular sobre o vezo dos lobos continua atual.

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