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segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

NENHUM EXCESSO SERÁ PERDOADO: LAVOURA ARCAICA E O FEMINICÍDIO



O jubileu de um clássico


Italo Calvino, em seu célebre  Por que ler os clássicos, diz, a certa altura, que os clássicos servem para nos ajudar a entender quem somos e aonde chegamos. Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, publicado em 1975, comemora seu jubileu no  mês de dezembro, justamente no mês em que mulheres, homens, idosos, jovens e crianças saem à rua no Brasil, cinquenta anos depois, em atos contra o feminicídio. A fúria fulminante de Iohána contra sua filha Ana é um lembrete claro de que o patriarcado não tolera os excessos femininos – quer reais ou frutos da imaginação paranoica masculina.


O patriarcado pune Ana e não André


O romance é a confissão de André, o filho pródigo que, atormentado por seus excessos, abandona   a  família   rural   e,   posteriormente,   retorna   à   casa   paterna.   Ele   faz   uso desregrado   do   álcool,  pratica   a   masturbação,   a   bestialidade   e   cultiva   um   amor incestuoso   pela   irmã, Ana.  Contudo,   as  forças   destrutivas  e   a   raiva   mortífera   do patriarcado se voltam não contra o filho transgressor, mas contra a figura feminina. Ana, que já era o objeto de uma paixão desmedida, oscila entre a beatitude e a sensualidade, e é justamente a expressão de sua força feminina e de seu desejo peculiar que não será perdoada pelo pai e pelo irmão.


A tragédia atinge seu ápice em uma festa celebrando o retorno de André. Ana ocupa o centro da cena, toda enfeitada e sensual como uma dançarina oriental, atiçando o desejo e o ciúme do irmão Pedro, o primogênito e símbolo da sensatez. Pedro, que é o esteio da virtude na família, identificado à figura paterna, rende-se à fúria destrutiva de suas pulsões ao revelar o segredo incestuoso de Ana e André ao pai. Iohna, o patriarca e farol moral, ao ver todas as suas barreiras morais rompidas, descarrega a rajada de sua ira sobre Ana e a assassina com um alfange. Nesse sentido, Lavoura Arcaica realiza uma interpretação   da   ambivalência   que   estrutura   o   desejo   da   sociedade   brasileira   em relação à figura feminina, segundo a qual, quando não se pode subjugá-lo ou contê-lo, o destino final é a sua destruição.


Iracema, Ana e a identidade da nação brasileira


Iracema é o nome de um romance de José de Alencar, publicado em 1865, e também de uma das maiores heroínas da literatura brasileira. O Clássico de Alencar faz parte de um projeto maior do autor e da literatura nascente brasileira, em firmar a independência das letras   brasileiras   em   relação   às   portuguesas   e,   mais   além,   da   construção   de   uma identidade para a nação brasileira. Iracema é uma mulher Tabajara que, por paixão romântica, abandona seu povo e vai embora com Martin, de cuja união nasce um filho, metaforizando a identidade mestiça da nação brasileira.


Nasce a nação, morre a heroína


Walnice Nogueira Galvão, crítica literária e professora emérita da Universidade de São Paulo, em seu livro Lendo e Relendo, diz que Iracema estava longe de ser uma donzela típica da época; ela era uma guerreira que lutava em pé de igualdade com os homens, perfil bem diferente de Martin, que era fraco e indeciso, cujo mérito foi ser objeto do amor imerecido da tão desejada virgem dos lábios de mel, que tinha cabelos mais negros que a asa da graúna e talhe da palmeira. Ao final do romance, acompanhamos a partida do pai e do filho, e a morte da mãe heroína.


Cento e dez anos separam a guerreira tabajara — Iracema (1865) — da dançarina oriental — Ana (1975) — e, em pleno século XXI, o Brasil continua matando suas mulheres, sejam heroínas ou não. A leitura de Lavoura Arcaica, que recomendo por toda sua   beleza   artística,   é   um   convite   à   reflexão:  será   que   podemos   inventar   outras maneiras de amar as mulheres fora desse enquadramento que constitui não somente a configuração do imaginário brasileiro, mas de todo o patriarcado? Que a resposta se encontre na força do poema Todas as vidas, de Cora Coralina, por toda a sua potência de significação. Que todas as mulheres tenham o direito de viver todas as suas vidas possíveis, sem interferência de um home que defina seus destinos.


Francisco Neto Pereira Pinto é esposo da Ana Paula e pai do Théo e do Ravi. Doutor em   Letras,   é psicanalista,   escritor   e   professor   permanente   no   Programa   de   Pós-Graduação   em  Linguística   e   Literatura   –   Mestrado   e   Doutorado,   da   Universidade Federal   do   Norte   do Tocantins.   É   autor   de   vários   livros,   dentre   eles  À   beira   do Araguaia.


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