A paideia grega revisitada - Blog A CRÍTICA

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A paideia grega revisitada


Autoria: Maria de Jesus Fonseca *


É comum considerar-se que há dois períodos na história da educação grega: o período antigo, que compreende a educação homérica e a educação antiga de Esparta e Atenas, e o novo período, o da educação no "século de Péricles", correspondendo este ao período áureo da cultura grega, o qual se inicia com os Sofistas e se desenvolverá com os filósofos/educadores ou educadores/filósofos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles. Depois, seguir-se-á o período helenístico, já de decadência, em que a Grécia é conquistada, primeiro pelos macedónios e depois pelos romanos. Atenas perde, então, a sua posição de centro cultural do mundo em favor, sobretudo, de Alexandria. E, se é certo que, apesar de vencida, a Grécia triunfou pela sua cultura, que se difundiu e universalizou - Graecia canta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio (Horácio) -, não é menos verdade que o que ganhou em universalização o perdeu em originalidade e alento criador.

Somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural; na sua actividade racional e nos seus ideais se encontram algumas das nossas raízes culturais mais profundas. Enfim, a nossa cultura europeia ocidental é o produto do cruzamento de algumas linhas de força essenciais, a saber: a inteligência grega, o direito romano e a religião cristã.

Ora, também a educação grega, sobretudo a educação ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos (Roma helenizou-se e depois romanizou)1, patenteia ainda hoje as suas influências tanto no modo como continuamos a conceber o que seja educação, como nos seus ideais educativos, como mesmo nalgumas das formas de realizar esses ideais, nomeadamente através de conteúdos educativos privilegiados. Em suma, em matéria de educação, os gregos não só definem o modelo como, simultaneamente, indicam a pedagogia a seguir. Será por isso que, ao manusearmos qualquer compêndio de História da Educação, o lugar que aí é reservado à educação nos povos primitivos e nas civilizações orientais ou é diminuto - algumas breves linhas - ou, pura e simplesmente, não existe.2 Somos, então, forçosamente levados a concluir que uma história da educação, com sentido e significado para nós, na nossa realidade educativa actual, começa na Grécia, porque é com os gregos que, autenticamente, o problema educativo se põe ou é entre eles que a educação se põe como problema.

E esta preocupação com o problema educativo é a preocupação dominante na Atenas do século V a. c. Os sinais disso são bem evidentes: aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas propostas e soluções educativas, com um novo plano de estudos e como outros e novos mestres, em nada semelhantes aos do passado; Sócrates que se diz impelido a realizar uma única missão, uma "missão divina", que ele entende como "missão educativa", e que questiona e problematiza: O que é educar? O que é ensinar e aprender? O que é a virtude e pode a virtude ser ensinada? (Cf. PLATÃO, Protágoras 325c - 326e e Ménon); Platão que na República e em As Leis propõe as suas respostas a estes mesmos problemas; Aristóteles cuja Ética a Nicómano constitui também uma visão do problema educativo, e que na Política versa ainda o mesmo tema. Mas esses sinais encontram-se não só na filosofia como também na literatura grega desta época, nas suas diferentes formas, seja na poesia (épica ou lírica), na tragédia ou na comédia (também elas escritas sob a forma poética), cuja intenção última é, afinal, uma intenção educativa. Relembrem-se, por exemplo, as Odes de Píndaro, o Prometeu Agrilhoado ou a Oresteia de Ésquilo, a Antígona, o Rei Édipo e a Electra de Sófocles, a Medeia e o Orestes de Eurípedes, As Nuvens e As Rãs de Aristófanes. Nestas duas comédias de Aristófanes o que está em questão é, visivelmente, a educação, mais precisamente, a educação do seu tempo e no seu tempo: a educação dos sofistas (grupo no qual Aristófanes inclui, erradamente, Sócrates, porquanto o confunde com os sofistas) em As Nuvens, e a educação proporcionada pelos poetas e tragediógrafos, seus contemporâneos, em As Rãs. O que se põe em confronto é, portanto, a nova educação e a velha educação, a educação tradicional. E é este último tipo de educação que o autor elogia - ela formou os guerreiros de Maratona. Quanto à nova educação, os seus resultados são desastrosos: ela subverte todos os valores tradicionais, corrompe os jovens, de modo que os mais novos já não respeitam os mais velhos e, agora, até os filhos já batem nos pais. (Cf. As Nuvens, sobretudo a discussão entre o raciocínio justo e o raciocínio injusto.)

Mas os novos ideais educativos do século V a. c. alicerçam-se, por um lado, em ideais já anteriormente expressos e, por outro, constituem um desenvolvimento, um alargamento e um enriquecimento desses mesmos ideais. Como diz Jaeger, "a história da formação grega (...) conserva bem clara a marca da sua origem." (JAEGER: s.d., 22)

Quais são, afinal esses ideais educativos que os gregos vão laboriosamente construindo e de que modo vão evoluir até se plasmarem, na sua forma última (aquela que tão persistentemente encontramos ao longo da cultura ocidental), na ideia de Paideia?3

Contudo "... não se pode utilizar a história da palavra Paideia como fio condutor para estudar a origem da educação grega, porque esta palavra só aparece no sec. V." (JAEGER: s.d., 23) De facto, a palavra Paideia encontra-se pela primeira vez em Ésquilo, Os Sete contra Tebas, e designa, tão somente, a "criação dos meninos"(Pais, Paidos = criança), significado "em nada semelhante ao elevado sentido que mais tarde adquiriu" (JAEGER: s.d., 23)

E se queremos encontrar um fio condutor que nos guie ao longo da história da educação grega e lhe dê unidade, encontramo-lo no conceito de aretê. De facto, "o tema essencial da história da educação grega é (...) o conceito de aretê que remonta aos tempos mais antigos" (JAEGER: s.d., 23). É este conceito que exprime a forma primeira, original e originária, do ideal educativo grego. Mas se o ideal educativo grego, na sua forma mais alta e acabada, se consubstancia no conceito de Paideia, é inegável que este conceito "conserva bem a marca da sua origem" (JAEGER: s.d., 22), já que Paideia, na densa riqueza do seu sentido - não é possível traduzi-lo em português numa única palavra - inclui, também, o conceito de aretê, para o qual remete. Não é por acaso que, nas grandes discussões sobre educação que o sec. V a.c. conhece, os dois conceitos - Paideia e aretê - estão sempre presentes, interpenetrando-se de modo tão profundo que vai até à quase sinonímia. Assim, os sofistas reclamam-se professores de aretê política4 e a sua Paideia consistirá em ensinar a technê politikê, a qual permitirá o domínio da aretê política. Também Sócrates, cuja missão ele próprio tão bem esclarece nesta passagem do texto platónico: "nas minhas idas e vindas pela cidade, não faço outra coisa senão persuadir-vos, novos e velhos, a que vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para a tornardes o melhor possível, dizendo-vos 'A virtude (aretê) não vem da riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo o que é bom para o homem, na vida particular ou pública." (PLATÃO: 1972, 85-86). Igualmente, para Platão, a questão central e decisiva se resume, afinal, a saber o que é a virtude (aretê). O tema de todos os diálogos platónicos é bem a prova disso; é verdade que se questiona e se procura saber o que é a coragem, a sabedoria, o amor, o belo, a justiça... e tantas outras virtudes! O problema é que esses valores são, ao fim e ao cabo, apenas exemplos de virtudes ou atributos do homem virtuoso, mas não são a virtude. Leiamos o que se diz no Ménon:

"Ménon - ...A justiça é virtude, meu caro Sócrates!
Sócrates - Como? Ela é a virtude, ou uma virtude?"

Ora, o problema está não em saber quais são as virtudes, mas, precisamente, em saber o que é a virtude. Ouçamos Sócrates, ainda no diálogo Ménon:

"Pois o mesmo se dá com as virtudes. Por mais numerosas que sejam, haverá sempre um certo carácter geral que as abrange a todas e por força do qual elas são virtudes. É este carácter geral que se deve ter em vista, para se saber o que é a virtude. Compreendes o que digo?" (PLATÃO: 1969, 71)

Enfim, o tema da virtude - aretê - como tema central e núcleo fundamental à volta do qual gira toda a discussão acerca da questão educativa, da Paideia, - porque educar é, em última análise, tornar melhor o homem, aperfeiçoá-lo, torná-lo mais virtuoso - é bem visível ainda em Aristóteles5, já do século IV a. c., bem como em toda a literatura da época que chegou até nós: na poesia, na tragédia, na comédia.

Sigamos, então, a evolução do conceito de aretê (traduzido, vulgarmente, por virtude, como já vimos, tradução esta que, de modo nenhum, esgota o sentido mais profundo e mais amplo que aretê tem em grego) desde que, pela primeira vez, aparece formulado como primeiro ideal educativo dos gregos.

É em Homero e nos chamados poemas homéricos, a Ilíada e a Odisseia,6 que tal ideal educativo aparece originalmente formulado e explicitado. E se, em ambos os poemas, o ideal homérico de homem - o herói - se define pela aretê, o modo de a conceber não é, contudo, igual nos dois poemas. Assim, na Ilíada, entre todas as suas muitas heróicas personagens, (Agamémnon, Ájax, Pátrocles, Diomedes, Menelau, Nestor, Ulisses - do lado dos Aqueus - Heitor, Páris, Príamo, Hécuba e Andrómaca - estes do lado dos troianos, constituindo as duas últimas as figuras femininas, em conjunto com Helena), todas com as suas qualidades, destaca-se claramente a figura de Aquiles, o herói modelo, nobre, valente e corajoso, o melhor - aristós - entre todos. Aquiles encarna, pois, a aretê e é na sua figura que se caracteriza esse ideal. Para além do guerreiro valoroso, valente, corajoso e honrado, Aquiles é o protótipo do perfeito cavaleiro da época homérica, arcaica, cortês, cavalheiresco, de boas maneiras, fino e polido no trato social. Mas se é em Aquiles que melhor se realiza este ideal, é evidente que não se chega lá espontaneamente, antes se pressupõe uma educação apropriada. É dessa educação que Homero nos fala no canto IX, quando põe na boca de Fénix, o velho preceptor e educador de Aquiles, estas palavras: "Fui eu que te fiz o que és!", ou ainda quando Fénix declara que foi a ele que Peleu, o pai de Aquiles, confiou o filho aquando da partida para a guerra de Tróia:

"Para isso me enviou, a fim de eu te ensinar tudo isto
a saber fazer discursos e praticar nobres feitos."

Estes versos, dos mais citados, definem com exactidão a aretê da Ilíada e consagram o ideal educativo nela presente. Mas ser aristos (possuidor de aretê), como superlativo que é, é ser, de entre todos, o mais valente, o mais conceituado, e comportar-se como o primeiro, conforme o significado do verbo aristein.7

Esta aretê é já, nos poemas homéricos, algo que não é dado mas sim conquistado, algo conscientemente procurado, por isso mesmo um ideal de cuja realização nos queremos aproximar o mais possível. Contudo, aretê não é ainda aqui entendida como virtude, como em grego clássico, mas sim como excelência, superioridade8 , enfim, aretê designa um atributo próprio da nobreza, um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como: a bravura, a coragem, a força e a destreza do guerreiro, a eloquência e a persuasão, e, acima de tudo, a heroicidade, entendida esta como a fusão da força com o sentido moral. A esta concepção de aretê se juntou, não pela etimologia mas pelo sentido, agathós. Ser agathós é ser nobre, é ter força ou coragem ou habilidade para qualquer fim superior. Enfim, aretê, assim entendida, caracteriza aquilo que Burckhardt, pela primeira vez, designou por espírito agónico ou ideal agonístico grego e que tão lapidarmente aparece definido por Nestor na Ilíada "ser sempre o melhor e distinguir-se dentre os demais."

Este ideal de homem (o homem de acção - cujo modelo exemplar é Aquiles - e o homem de sabedoria, protagonizado por Ulisses) e este espírito agonístico perdurarão na Grécia, mesmo durante a época clássica. A realização dos grandes festivais (as Panateneias e as Grandes Dionísias, que incluíam competições várias, provas atléticas, recitação dos Poemas Homéricos) e dos Jogos Pan-helénicos (Olímpicos e Píticos, de 4 em 4 anos, Nemeus e Ístmicos, de 2 em 2 anos) são bem a prova disso. A combatividade e a competitividade constituíam o espírito do concurso e se, como se sabe, o prémio, para o vencedor, não tinha valor pecuniário, consistindo numa coroa de folhagem de árvores simbólicas dos vários Deuses em honra dos quais se celebravam os Jogos, então lutava-se apenas pela honra e pela glória, pela superioridade e pela heroicidade. De facto, o vencedor dos Jogos cobria-se de glória pessoal e, sendo considerado um herói, isso reflectia-se na sua polis. Em Atenas, por exemplo, ele era recebido com pompa e circunstância, entoando-se cânticos em sua honra, compostos por grandes artistas, e tanto ele como os seus descendentes eram alimentados no Pritaneu, a expensas da cidade.

Se esta é a aretê da Ilíada, a da Odisseia é já mais alargada. A Odisseia relata o regresso do herói - Ulisses - a casa, vindo da guerra de Tróia. Ora, Ulisses junta à força, coragem, bravura e eloquência, a astúcia, a manha, o engenho e a inteligência, que o levam a desenvencilhar-se das situações mais complicadas, nas aventuras do regresso. Por isso, no poema, o seu epíteto mais comum é "Ulisses dos mil artifícios". Mas, mais uma vez, estas qualidades incutem-se e desenvolvem-se apenas através da educação. Assim, na Odisseia, Telémaco, filho de Ulisses, é o único jovem em formação e é a sua educação, que lhe é ministrada pela deusa Atena, disfarçada de Mentes ou Mentor, amigo e hóspede de seu pai, que o poema descreve logo no canto I, mais conhecido por Telemaquia. E graças a essa educação, Telémaco transforma-se: do jovem dócil e passivo do começo do poema, torna-se o príncipe consciente dos seus deveres, o companheiro de luta, valente e ousado que ajudará o pai, na sua vingança, a enfrentar os pretendentes de Penélope, sua mãe e fidelíssima esposa de Ulisses.

Mas, quer na Ilíada quer na Odisseia, a educação que se propõe traz, agarrada a si, uma pedagogia que lhe corresponde: a pedagogia fundada no exemplo vivo ou no exemplo mítico, a pedagogia do paradigma. O herói prototípico institui-se como modelo exemplar a seguir; imitar os heróis, o que desperta a emulação, para, como eles, ser herói, possuidor da aretê heróica.

Homero é, entre todos os poetas gregos, considerado o maior e, a crer nos testemunhos, a opinião corrente ao tempo indica-o também como o educador de toda a Grécia. De facto, a tradição homérica e o ideal educativo que nela se propõe são transmitidos oralmente, de geração em geração, pelos aedos e rapsodos. Também só assim se pode compreender a afirmação " Nele [em Homero], pela primeira vez, o espírito pan-helénico atingiu a unidade da consciência nacional e imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior". (JAEGER,s.d.,77)

Na verdade, separados politicamente e organizados em cidades-estado independentes, os gregos estão, contudo, espiritualmente unidos. Antes de mais, pela unidade de língua, mas outros elementos presidem a essa união: os jogos pan-helénicos, os grandes santuários religiosos e, sobretudo, a mesma cultura. É este espírito, que se veio a designar de pan-helénico, que aparece já claramente definido por Isócrates "...o nome de Gregos já não parece ser usado para designar uma raça, mas uma mentalidade, e chamam-se Helenos mais os que participam da nossa cultura (Paideusis) do que os que ascendem a uma origem comum." (ISÓCRATES, Panegírico, 50 in: PEREIRA,1971,303)

Para além de Homero, inegavelmente o mais influente, também são cantados e recitados outros poetas dos quais se deve, com justiça, destacar Hesíodo, autor da Teogonia e dos Trabalhos e Dias. Nesta última, introduz uma outra concepção de aretê: o herói agora é o homem que trabalha duramente e o trabalho é fonte de dignidade e conduz à superioridade,

"Trabalho não é vileza, vileza é não trabalhar." (verso 311)

Para além do elogio do trabalho, há também o elogio da Justiça9 e do Direito, valores estes que constituem o tema fundamental do poema e os núcleos centrais do mundo moral de Hesíodo. É pela justiça que o homem se distingue dos animais e ambos, trabalho e justiça, conduzem à aretê - ao mérito e à glória do homem.

Já acima o referimos, os primeiros educadores do mundo grego são os poetas, que surgem não apenas como educadores da sua época, mas, porque a sua influência perdurou muito para além do seu tempo, como educadores de toda a Grécia. E porque Homero é, de todos, o mais considerado e o mais influente, é ele, fundamentalmente, o educador da Grécia e mesmo de todo o mundo antigo. Ser culto ou homem cultivado era, na Antiguidade, saber Homero de cor e ser capaz de o citar em qualquer ocasião. É o que pode constatar-se em fontes várias, as mais importantes das quais são Platão e Xenofonte. Assim, pode ler-se na República "Por conseguinte Gláucon se algum dia encontrares encomiastas de Homero, que te afirmem que esse poeta foi o educador da Grécia e que, no que toca a administração e educação (Paideia) humana, é digno de ser tomado como modelo para aprender com ele e regular toda a vida segundo as normas deste poeta..." (PLATÃO,606 e - 607 a)

Do mesmo teor são as declarações de Xenofonte. Por exemplo, quando no Banquete põe na boca de Nicérato estas palavras: "O meu pai, que tinha a preocupação de fazer de mim um homem de bem (agathós), obrigou-me a aprender os Poemas Homéricos inteiros. E ainda agora, eu seria capaz de dizer de cor a Ilíada e a Odisseia." (XENOFONTE, Banquete, III,5-6 in: PEREIRA,1971,370) Ou ainda quando afirma "Podeis ouvir de mim como haveis de vos tornardes melhores (...) Sabeis, sem dúvida, que Homero, o mais sábio (sophós) de todos, poetou sobre quase todas as actividades humanas. Portanto quem quiser tornar-se um bom administrador da sua casa, orador público, ou general, ou semelhante a Aquiles, Ájax, Nestor ou Ulisses, que fale comigo, porque eu sei disso tudo." (XENOFONTE, Banquete, IV,6 in: PEREIRA,1971,371)

E, diga-se de passagem, que estas duas fontes são tanto mais fidedignas quanto sabemos que, quer Platão, quer Xenofonte, são visceralmente contra este tipo de educação e a deploram. (Cf. PLATÃO, A República,607 a - 608 b)

Mas já muito antes de Platão e Xenofonte, esta hegemonia dos poetas e a sua influência na educação tinham sido postas em causa pelos primeiros filósofos, Xenófanes e Heraclito.O primeiro, Xenófanes, reconhecendo embora a omnipresença de Homero "uma vez que desde o início todos aprenderam por Homero" (Frg. 10 Diels), considera nefasta essa influência pois que

"Quanto há de vergonhoso e censurável
Tudo isso atribuíram aos deuses Homero
E Hesíodo: roubos, adultérios, mentiras."

(Frg. 11 Diels in: PEREIRA,1971,121. Confronte-se também o frg. 2 Diels in: PEREIRA,1971, 119-120)

Igualmente Heraclito acusa " Homero merece ser expulso dos concursos e ser açoitado bem como Arquíloco" (Frg. 42 Diels in: PEREIRA,1971,124) Mas estas críticas não conseguiram abalar o domínio dos poetas, que mantiveram sempre a sua influência.

Até à época clássica, e mesmo durante a época clássica, onde este tipo de educação coexistiu com a nova educação, manteve-se esta educação tradicional e este ideal educativo.

No entanto, pelos fins da época arcaica, já este ideal tinha sido alargado: não bastava cobrir-se de honra e glória, como nos tempos homéricos, mas pretendia-se alcançar a excelência tanto no plano físico como no plano moral. Tal ideal exprime-se pela palavra Kalokagathia: beleza e bondade são os atributos que o homem deve procurar realizar. "O ideal de harmonia expressa-se (...) com a aspiração à kalokagathia, na qual se via a bondade indissoluvelmente ligada à beleza, bondade resultante de um firme e equilibrado domínio de si e beleza que representa exteriormente a serena ordem interior da alma. (...) Aristóteles assinalou que o fim do homem é 'viver feliz e belamente'. Por isso a educação grega é a busca de uma perfeita euritmia." (MORANDO,1961,40-41) Assim, o homem forma-se segundo o princípio da autarquia, de um crescente domínio de si, pela libertação relativamente aos seus instintos, desejos e paixões, que devem ficar submetidos à razão. Eis como Platão o define: "- Que entendes tu por governar-se a si próprio?
- (...) ser temperante, ter autodomínio, comandar em si próprio os prazeres e as paixões." ( PLATÃO, Górgias, 491 e)

Para alcançar tal ideal propõem-se a ginástica, para desenvolver o corpo, e a música, com a leitura e o canto das obras dos grandes poetas, para o espírito. Tratava-se, com tal programa educativo, de desenvolver uma das qualidades do homem, a sofrosune, que podemos traduzir por temperança e que implicava um perfeito domínio de si, aliando sabedoria e acção avisada, porque fundada nessa sabedoria. Música não tem, nesta altura, o sentido estrito que ainda hoje lhe damos, mas incluía tudo o que estava relacionado com as actividades presididas pelas Musas: poesia, drama, história, oratória e também, claro está, música no sentido restrito. É este ideal de kalokagathia que os latinos plasmam na fórmula "Mens sana in corpore sano." Este estudo dos poetas, na música, tinha fins essencialmente morais e psicagógicos e, conjuntamente com a ginástica, eram considerados uma formação completa, total e equilibrada. O ideal era, portanto, um ideal de sabedoria, pelo domínio dos instintos, desejos e apetites pela razão, um ideal de equilíbrio e harmonia, um ideal de medida, de justa medida. Desenvolver o corpo e o espírito de forma equilibrada e harmónica, tanto um como o outro, não mais um que o outro. Este ideal ainda hoje continua presente e vivo.

O programa completo de estudos era constituído pela ginástica, ensinada nos ginásios e nas palestras, sendo o pedotriba ou paidotriba o mestre de educação física, e pela música que ensina as crianças a tocar cítara, para se acompanharem enquanto cantam as obras dos grandes poetas, sendo o mestre o citarista. Nesta altura, o citarista ensina ainda a ler e escrever, porque para cantar os poetas é preciso saber ler as suas obras. Já no fim da época arcaica, o programa completava-se com a frequência da escola do gramático (este depressa se passará a chamar didáscalo), o mestre de ler e escrever, que ensinava também rudimentos de cálculo.10 Como parece que se tratavam de escolas diferentes, aparece a figura do pedagogo, ou seja, do escravo que acompanhava o menino à escola e que, igualmente, superintendia no seu aconselhamento, vigiando o seu comportamento moral.

Sendo estas escolas públicas, mas não do Estado, eram contudo supervisionadas pelo Estado, através de um funcionário, o sofronista, em Atenas. Figura idêntica aparece em Esparta, o pedonomo ou paidonomo, com funções de vigilância sobre as crianças e sobre o tipo de educação que lhes era ministrado.11

No Protágoras, mais uma vez, Platão dá-nos um retrato fiel desta educação tradicional e, apesar de longo, cremos que vale a pena transcrevê-lo:

"- Logo que a criança começa a compreender o que lhe dizem, a ama, a mãe, o pedagogo e até o próprio pai se esforçam por que ela se torne o mais perfeita possível. A cada acção ou palavra lhe ensinam ou apontam o que é justo e o que não é, que isto é belo e aquilo vergonhoso, que uma coisa é piedosa, e outra ímpia, e 'faz isto', 'não faças aquilo'. E, ou ela obedece de boa mente, ou então, corrigem-na com ameaças e pancadas, como se fosse um pau torto e recurvo. Depois, mandam-na à escola, com a recomendação de se cuidar mais da educação das crianças que do aprendizado das letras e da cítara. Os mestres, por sua vez, empenham-se nisso, e, depois de elas aprenderem as letras e serem capazes de compreender o que se escreve, (...) põem-nas a ler nas bancadas as obras dos grandes poetas, e obrigam-nas a decorar esses poemas, nos quais se encontram muitas exortações e também muitos (...) elogios e encómios da valentia dos antigos, a fim de que a criança se encha de emulação, os imite e se esforce por ser igual a eles.

Os mestres de cítara, por sua vez, fazem outro tanto, cuidando do bom senso (sofrosune) e de evitar que os jovens procedam mal. Além disso, depois de saberem tocar, aprendem as obras dos grandes poetas líricos, que executam na cítara. Assim, obrigam os ritmos e harmonias a penetrar na alma das crianças, de molde a civilizá-las, e, tornando-as mais sensíveis ao ritmo e à harmonia, adestram-nas na palavra e na acção. Na verdade, toda a vida humana carece de ritmo e de harmonia. Além disso, ainda se mandam as crianças ao pedotriba, a fim de possuírem melhores condições físicas, para poderem servir a um espírito são, e não serem forçadas à cobardia, por fraqueza corpórea, quer na guerra, quer noutras actividades. Assim fazem os que têm mais posses; e os de mais posses são os mais ricos. Os filhos desses começam a ir á escola de mais tenra idade, e saem de lá mais tarde.

Depois de estarem livres da escola, o Estado (polis), por sua vez, obriga-os a aprender as leis e a viver de acordo com elas, a fim de que não procedam ao acaso. Tal como o mestre-escola que, para os que não sabem escrever, traça as letras com o estilete e lhes entrega a tabuinha e os força a desenhar o traçado dos caracteres, assim também a cidade, depois de ter delineado as leis, criadas pelos bons e antigos legisladores, os força a mandar e a serem mandados de acordo com elas. (...) Perante tais cuidados com a virtude (aretê) particular e pública, ainda te admiras, ó Sócrates, e pões objecções à possibilidade de a virtude se ensinar?" (PLATÃO, Protágoras, 325 c - 326 e in: PEREIRA, 1971,397)

Mas este era apenas o programa educativo escolar que, de modo nenhum, esgotava a totalidade do programa educativo. Depois da escola, "a cidade continuava educando nas reuniões políticas, administrativas e jurídicas, nos jogos, com o esplendor das artes figurativas e arquitectónicas, e, sobretudo, com a magnificência das representações dramáticas. Nem em Atenas nem na Grécia o teatro era só para os privilegiados: era a escola de todos os cidadãos."12 (MORANDO,1961,45)

É que "a educação ateniense, posta em prática na escola e na cidade, tinha duas finalidades precisas: o desenvolvimento do cidadão fiel ao Estado e a formação do homem que adquiriu plena harmonia e domínio de si" (MORANDO,1961,45), sendo, por isso mesmo, absolutamente autárquico.

Se, até agora, todo o problema educativo girava, essencialmente, à volta da educação do homem como ser individual - por isso o objectivo fundamental da educação era a formação do homem, tratando-se de saber qual o caminho que o processo educativo devia seguir para que o homem, cada homem, pudesse alcançar o ideal, a aretê individual, entendida neste momento como kalokagathia, a partir de agora, na Atenas do século V a.c., isso já não é o bastante. Para além de formar o homem, a educação deve, sobretudo, formar o cidadão. A finalidade cívica da educação passa, claramente, a primeiro plano. É originariamente grega a ideia, tão actual, de que a educação é preparação para a cidadania. Habitante da Pólis, o homem só é o que é porque vive na cidade e sem ela não é nada. E o que diz respeito à cidade, é comum, isto é, afecta a todos enquanto comunidade e afecta cada um enquanto cidadão ou membro dessa comunidade. Neste sentido, é evidente que, antes de mais, o homem é um animal político (zoon politikon), como bem o captou Aristóteles, distinguindo-o, assim, do animal pela sua qualidade de cidadão, e o Biós politikos é a forma própria e sublime de vida do homem como habitante da pólis.

A consciência da cidadania cedo faz sentir a necessidade de uma nova educação, pois que a antiga educação, com o seu receituário básico, simples e elementar de ginástica e música, não servia já para a formação do cidadão, nem correspondia às novas necessidades individuais nem às novas exigências sociais e políticas. Politicamente, a forma democrática de organização do Estado foi a forma de governo escolhida pela Cidade-Estado de Atenas. Ora, no estado democrático ateniense, a exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, ou seja, cidadãos, participarem activamente no Estado e na vida pública são deveres cívicos inalienáveis e aos quais ninguém se pode eximir, e a participação nas assembleias torna indispensáveis os dotes de eloquência e apela para uma formação oratória. Neste contexto se compreende que tenha surgido uma nova estirpe de "educadores" - com o estrondoso sucesso que se lhes conhece - que se apresentam como professores no sentido actual do termo, (os primeiros professores da história) e que oferecem, a troco de dinheiro, o ensino da "virtude", o ensino da aretê política ou, como também lhe chamam os sofistas, a technê política. Mais uma vez a fonte platónica é esclarecedora:

"O meu ensino tem por objecto a prudência no que respeita aos assuntos próprios, de modo que a administração da casa seja o melhor possível, e, no que respeita aos da cidade, de maneira a dirigi-los na perfeição em actos e palavras.

Então - disse eu - estarei a seguir bem as tuas palavras? Segundo me parece, referes-te à arte de governar (aretê politikê)13 e prometes formar bons cidadãos?

- É isso mesmo, Sócrates - disse ele [Protágoras] - é isso o que eu me proponho fazer." (PLATÃO, Protágoras,319 a in: PEREIRA,1971,394)

Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por isso, capazes de a transmitirem e a ensinarem, e os jovens, seus alunos, que vierem a dominar a technê política alcançarão, por isso mesmo, a aretê política.14

Mas esta aretê política, ou melhor, technê política, tão em conexão com as finalidades práticas que se propõe - formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública - vai conduzir, necessariamente, à valorização do homem, cidadão individualmente considerado, e vai, igualmente, orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Os seus contemporâneos vão acusar os sofistas de imoralidade.
Indubitavelmente que o centro da vida política é o homem (daí falar-se em humanismo, ou no giro antropocêntrico que a sofística implica), mas o homem individual (de onde o individualismo sofístico) e, então, o humanismo sofista não é senão um individualismo ou um relativismo total. É bem conhecida, e muito citada a este propósito, a paradigmática frase de Protágoras "O homem é a medida de todas as coisas".
Indubitavelmente, também, que o homem, assim situado no coração da pólis, quer vencer na vida política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político, precisa de saber falar bem, de encantar o auditório, de construir discursos persuasivos, de formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Precisa, pois, da arte sofística da oratória, da retórica e da dialéctica. Mas porque o que é necessário é ter sucesso na vida pública e política, vencer a todo o custo e a qualquer preço, e isso só é possível convencendo os outros das minhas razões, retórica e dialéctica tornam-se armas potentíssimas que é preciso saber esgrimir com perícia; técnicas cujo domínio permite utilizá-las segundo as nossas conveniências, mas técnicas que se podem aplicar a qualquer conteúdo. "...seja qual for o profissional com quem entre em competição, o orador conseguirá que o prefiram a qualquer outro, porque não há matéria sobre a qual um orador não fale, diante da multidão, de maneira mais persuasiva do que qualquer outro profissional. Tal é a qualidade e a força desta arte que é a retórica." (PLATÃO, Górgias, 456 e) Sendo assim, esse conteúdo é esvaziado de sentido, pelo menos de sentido ético, e o discurso reduz-se, por isso mesmo, a um mero exercício tecnicista, a uma mestria ou a um virtuosismo técnicos. O domínio dessa técnica permite construir os argumentos necessários a fazer valer este ou aquele ponto de vista, conforme os meus interesses do momento e independentemente da contradição que possa existir entre esses pontos de vista. Entram assim em crise os sacrossantos valores da tradição: verdade, justiça, virtude, rectidão... Eles não importam, porque o que importa é vencer! Quando muito o que importa é o que é bom para mim. Em todo o caso, não valem como valores absolutos, mas são relativizados. São o que o homem quer e decide que sejam a cada momento. A dialéctica aplicada à política vira, portanto, as costas à ética. É este o tema central do Górgias. De facto, trata-se de saber o que é a retórica ou oratória, estabelece-se que não é ciência mas técnica e, em todo o caso, técnica maldita, pois, como o prova Sócrates, só precisa dela quem quer enganar e ludibriar os outros, quem quer praticar o mal e a injustiça "É para isto, Polo, que a retórica me parece ter utilidade, uma vez que, para quem não pensa em praticar a injustiça, é reduzido o seu préstimo, para não dizer que não tem nenhum..." (PLATÃO, Górgias, 481 b) Ora, os artífices desta técnica são os sofistas, ("Sofistas e oradores são a mesma coisa" PLATÃO, Górgias, 520b), pelo que o Górgias, condenando a retórica porquanto conduz à imoralidade, condena simultaneamente toda a sofística, e de forma bem cáustica e veemente. Não admira que os sofistas venham a ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e pervertida, de corromper a juventude e de sublevar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e política estabelecida. É esta situação, a que a nova educação conduziu, que Aristófanes ridiculariza, caricaturizando-a em As Nuvens. Será esta tendência degenerescente em que desabou a sofística que Sócrates quer inverter, reconstruindo a conexão da cultura do espírito, da cultura intelectual com a cultura moral e política e voltando a situar o ethos no coração do homem, no centro da actividade política e no centro da aretê.

Ao longo dos diálogos platónicos são muitas as vezes que Sócrates se escandaliza e considera um paradoxo o facto de para todos os ofícios se exigir uma competência específica e o mesmo não se verificar para os governantes e políticos. Por exemplo, um sapateiro, um alfaiate, um carpinteiro precisam de um certo saber para realizarem o seu trabalho, "ao passo que ao político bastava uma educação genérica, (...) muito embora o seu 'ofício' tratasse de coisas muito mais importantes." (JAEGER, s.d.:136) Enfim, os sofistas apresentam-se como mestres de aretê política, mas estão bem longe de corresponderem a tal presunção. É verdade que ensinam os homens a discursar elegantemente nas assembleias, indo mesmo ao ponto de os instruírem a servirem-se despudoradamente de todos os meios para realizarem as suas ambições. Mas, afinal, aos olhos de Sócrates e de Platão, os sofistas são, tão só, demagogos e a especialidade de que se dizem mestres não é outra coisa senão a demagogia. Por isso, ao que ensinam, "dou-lhe o nome geral de 'adulação' e partes da mesma adulação são para mim também a retórica (...) e a sofística", como afirma Sócrates. (PLATÃO, Górgias, 463 b)

Mas se é comum a todos os sofistas o considerarem-se mestres da aretê política, a sua opinião diverge no que respeita ao modo de a conceber e de a realizar. Assim, para uns, a educação que levará ao domínio da arte política consistirá na transmissão de um saber enciclopédico, de uma polimatia da qual se gabam e dizem mestres - o representante mais significativo desta tendência é Hípias (Cf. PLATÃO, Hípias Menor, 368 b - 368 e in: PEREIRA, 1971:399-400), o qual, contrariamente à maior parte dos outros sofistas, atribui um alto valor formativo às matemáticas, incluindo ele próprio, no ensino que ministra, "o cálculo, a astronomia, a geometria e a música" (PLATÃO, Protágoras, 318 e in: PEREIRA,1971:394), disciplinas estas que, mais tarde, vieram a constituir o quadrivium; para outros, dos quais o principal representante é Protágoras, a educação é, essencialmente, formação, formação do espírito e formação do cidadão, e o modo privilegiado de a conseguir é pelo ensino da gramática, da oratória e retórica e da dialéctica, disciplinas estas que, na Idade Média, formaram o chamado trivium e que, conjuntamente com o quadrivium, constituíram as sete artes liberais.15

A respeito da educação proporcionada por Protágoras, Platão é, uma vez mais, uma fonte preciosa: "Mas talvez não tenhas na mesma conta, ó Hipócrates, o ensino de Protágoras e o que recebeste junto do mestre de gramática, de cítara e de ginástica? Pois estudaste cada uma destas artes, não para as exercitares como um profissional, mas para receberes aquela cultura (Paideia) que convém a um leigo e a um homem livre.
- Ora é esse o género de ensino (Paideia) de Protágoras, segundo me parece - disse ele." (PLATÃO, Protágoras, 312 a-b in: PEREIRA, 1971:391)

A verdadeira Paideia, conscientemente procurada, é, portanto, para Protágoras, uma cultura geral de carácter superior, entendida como alimento para o espírito, ou melhor, como alimento que forma o espírito.
Platão que, tanto quanto se sabe, foi o primeiro a chamar-lhe formação, definirá a educação como formação geral, insistindo, contudo, no facto de essa formação valer por si mesma e em si mesma, porque desinteressadamente procurada e não em vista de qualquer finalidade prático-utilitária. Por isso se esforça tanto em a distinguir do saber especializado e técnico dos profissionais, não só porque esse saber não é um saber pelo saber, antes é um saber-como, um saber-fazer, portanto um saber meramente técnico, mas também porque, em consequência, é um saber utilitário, isto é, um saber que é meio para um fim e não um fim em si mesmo.

De entre as novidades introduzidas pelos sofistas destacar-se-á o facto de terem sido os primeiros a ministrar um tipo de educação superior e, sobretudo, a convicção de que "a educação não acaba com a saída da escola. Em certo sentido, poderia dizer-se que é precisamente nessa altura que principia." (JAEGER, s.d.:335) De facto, a sua educação dirige-se ao jovem que concluiu já o currículo escolar tradicional e quer iniciar a sua vida política. Esta mesma ideia será alargada com Sócrates,16 para quem a educação não consiste na transmissão de conhecimentos, mas sim na formação do homem como homem. Assim, "a verdadeira essência da educação é dar ao homem condições para alcançar o fim autêntico da sua vida. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com a phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos duma chamada cultura superior. Só pode alcançar o seu objectivo ao longo de toda a vida do Homem; de outro modo não o alcança." Enfim, para Sócrates, "a suma e o compêndio do 'tudo o que eu tenho' é a paideia." (JAEGER, s.d.:532) Platão17 retomará esta ideia socrática, considerando que o processo educativo completo - o do filósofo governante - terá o seu termo aos 50 anos de idade. Assim, a formação dialéctica realiza-se dos 20 aos 35 anos e dos 35 aos 50 consolida-se, pela prática dessa mesma formação. Toda a educação anterior é considerada como propaideia, como propedêutica à verdadeira Paideia. A longa duração da formação dialéctica (15 anos na sua totalidade) , e, nem sequer, ao fim desse período, se pode considerar completada, pelo que, afirma Platão, só aos 50 anos (cf, PLATÃO, República,540 a) se pode dar por concluído o processo educativo, isto não é senão uma maneira metafórica, tão ao gosto platónico, de dizer que a educação nunca acaba e que dura tanto quanto durar a vida do homem. O próprio do homem é, portanto, encontrar-se permanentemente em processo de formação. Convenhamos que esta ideia, tão valorizada nos nossos dias e, tantas vezes (!), apresentada como uma invenção e uma exigência exclusivas do nosso tempo, não é nada nova!

Mas o que Platão, no sec. IV a.c., assim plasma desta maneira tão exemplar, duradoira e hodierna, é algo que se encontra presente na cultura grega, desde as suas origens. Diz Jaeger a propósito do homem grego "...à medida que avançava no seu caminho, ia-se-lhe gravando na consciência, com crescente claridade, a finalidade sempre presente, em que a sua vida assentava: a formação dum elevado tipo de homem. A ideia de educação representava para ele o sentido de todo o esforço humano." (JAEGER, s.d., 6) O homem só é homem pela educação, só vale pela educação - os gregos bem o perceberam. Daí que a educação constitua para eles um interesse vital, de tal modo que o problema educativo se lhes impõe como o problema fundamental do homem e como o problema decisivo para o destino do homem. Homem e educação encontram-se inelutavelmente vinculados, de tal modo que um só existe pelo outro.18 Por isso, Jaeger acrescenta mais à frente "os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser um processo de construção consciente" (JAEGER, s.d.: 12), caso contrário, ela não forma o homem como homem e, muito menos, o elevado tipo de homem que se pretende.

O mesmo afirma Luzuriaga, traçando simultaneamente uma síntese da evolução do ideal grego de educação: "O ideal grego de educação é o primeiro que aparece na história de maneira consciente e caracteriza-se, em geral, pela formação do homem político, o homem da pólis (...), do cidadão, tanto no aspecto civil como no aspecto bélico. Esse ideal sofre uma evolução, a partir dos tempos heróicos de Homero, onde predomina o guerreiro, até à época (...) de Péricles, em que sobressai o político." (LUZURIAGA, 1977: 106) Dentro deste desenvolvimento, a educação grega tem como aspiração a excelência - aretê - , mais tarde esse ideal é completado pelo de kalokagathia, o ideal da perfeição do corpo e da alma em beleza, bondade, sabedoria e justiça do indivíduo na comunidade pública. Mas todo o ideal grego aparece, finalmente, como Paideia. (Cf. LUZURIAGA, 1977, 106)

Mas, afinal, o que pode entender-se por Paideia, palavra esta que consubstancia o ideal grego de educação? Platão, define-a desta forma "...toda a verdadeira educação ou Paideia, a que é educação na aretê, que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e a obedecer, sobre o fundamento da justiça " (PLATÃO, Leis, 643 e in: JAEGER, s.d.: 136); ou ainda desta outra " A formação (Paideia) que, desde a infância, inspira o desejo apaixonado de se tornar um cidadão completo e realizado", como diz o personagem, o Ateniense, num dos diálogos platónicos. (Cf. MIALARET e al., 1981:150) A Paideia é, então, entendida como formação, como uma formação geral que dará ao homem a forma humana, ou seja, que o construirá como homem e como cidadão.19 E este ideal aparece claramente como o ideal de Paideia no sec. IV a. c. e encontra-se bem presente, desde logo, com os sofistas, mas este é também o ideal que encontramos em Sócrates, em Platão, em Aristóteles ou em Isócrates. A Paideia, assim concebida, torna inteligível a afirmação "O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo mas o 'humanismo', para usar a palavra no seu sentido clássico e originário. Humanismo vem de humanitas. (...) Significou a educação do Homem de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser. Tal é a genuína Paideia grega (...). Não brota do individual, mas da ideia. Acima do homem como ser gregário ou suposto eu autónomo, ergue-se o Homem como ideia. A ela aspiraram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filósofos. Ora, o Homem, considerado na sua ideia, significa a imagem de Homem genérico na sua validade universal e normativa." (JAEGER, s.d.:13) De facto, parece ser precisamente isto que constitui o cerne do ideal educativo grego, desde os seus primórdios. É assim que o vemos nos poemas homéricos, onde se desenha claramente um ideal de homem que todo e qualquer homem, para o ser, deve encarnar. É também isso mesmo que, mais clara e nitidamente que em qualquer outro 'autor', encontramos em Sócrates.

De facto, a inscrição do frontispício do templo de Delfos, que Sócrates tomou como lema da sua filosofia e do seu projecto educativo, o "conhece-te a ti mesmo", considerou-a ele a frase que constituía a pedra de toque do seu destino e da sua missão, bem como nela se resumia, de forma prototípica, todo o sentido da vida humana - não apenas o sentido da sua vida, mas o sentido da vida. É que, no modo socrático de ver, o "conhece-te a ti mesmo" não se pode interpretar como um conhecimento individual e subjectivo, como apelo a um conhecimento de si mesmo como homem individual, como conhecimento do "eu", do seu eu, de forma mais ou menos introspectiva. Pelo contrário, o "conhece-te a ti mesmo" só tem verdadeiro significado se entendido como procura do conhecimento do universal e do essencial, como busca do que é comum a todos os homens, como pesquisa do que nos faz, a todos e a cada um, ser homens; a divisa socrática reclama que, para lá do que diferencia os homens se busque o que os une, para lá do indivíduo ou do eu se encontre o Homem. A questão originária, a questão primeira e fundamental, é, pois, a questão sobre o Homem. O que é o Homem?20 O que é ser Homem? Esta é a principal de todas as questões, senão mesmo e afinal a única questão! O que Sócrates exige e procura incansavelmente é o conhecimento, não deste, daquele ou daqueloutro homem, mas do Homem. O que ele busca é a essência do Homem, a ideia de Homem, e se o homem é isso que a ideia define, então a ideia converte-se em ideal, porque todo e qualquer homem, para o ser, deve ser isso. Busca-se, portanto, o que há de humano no homem ou a humanidade do homem. Explicitamente formulado e conscientemente procurado, este é o Humanismo socrático. Constitui, também, a primeira formulação do que, essencialmente, se entende por humanismo. "Todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o facto fundamental de toda a educação grega, a saber: que a humanidade, o 'ser do homem' se encontra essencialmente vinculado às características do Homem como ser político." (JAEGER, s.d.:15-16) É também para isto que Sócrates chama a atenção quando adverte que a procura do ser homem ou a resposta à questão 'o que é ser Homem?', só pode encontrar-se se for uma procura comum, um esforço partilhado por todos os homens. Não esqueçamos, por outro lado, que ser homem, para os gregos, era indissociável do facto de o homem só ser plenamente homem enquanto habitante da pólis.

Ora, toda a educação grega parece convergir na realização deste ideal: construir o homem como homem, ajudar o homem a descobrir a sua humanidade, permitir a cada homem Ser Homem. A Paideia grega impõe-se como um humanismo. E não continua a ser este, hoje como ontem, o esforço gigantesco e heróico de toda a educação? A enorme e duradoura influência do que os gregos entenderam por Paideia não pode tornar-se mais patente.

"O termo grego Paideia evoca tanto o próprio conteúdo da cultura como o esforço para constituir, na criança (Pais, Paidos) um património de valores intelectuais e morais que a integram na comunidade humana. Finalmente, Paideia implica tudo o que distingue o grego, o homem civilizado, do bruto e do bárbaro ou ainda o que permite ao indígena aceder, pela educação, a um novo estatuto cultural, social, político. A educação impõe-se como uma obrigação da qual a cidade não pode fugir e à qual não pode escapar."21 ( MIALARET e VIAL,1981:165) Ontem como hoje, a educação impõe-se como uma obrigação e um destino ao qual as sociedades e os poderes políticos22 não podem fugir e do qual não podem escapar.

Mas o termo Paideia não tem uma tradução tão simples (ou aparentemente tão simples): ele não significa, como vulgarmente se traduz, apenas educação. Significa muito mais que isso, aglutinando termos tais como cultura, instrução, formação... Aliás, entre os Gregos, como já vimos, desde o seu surgimento, a palavra Paideia foi cobrindo um campo cada vez mais vasto de significados. O termo começa a ser utilizado no sec. IV a. c. e, nessa altura, tão somente, começa por significar a criação dos meninos. Mas o seu significado depressa se alarga passando a designar não só o processo educativo, mas também o conteúdo e o produto desse processo. "O conceito [Paideia] que originariamente designava apenas o processo de educação como tal, alargou (...) a esfera do seu significado, exactamente como a palavra alemã Bildung (formação) ou a equivalente latina cultura, do processo da formação passaram a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura (...). Torna-se assim claro e natural o facto de os gregos, a partir do sec. IV, em que este conceito achou a sua cristalização definitiva, terem dado o nome de paideia a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Buildung ou, com a palavra latina, cultura." (JAEGER, s.d.:328) Tal como ainda diz Jaeger "Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por Paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez." (JAEGER, s.d.:1)

POST-SCRIPTUM

Algumas reflexões se nos oferecem a propósito da designação de Politécnico, usada para denominar um conjunto de escolas e instituições onde se ministra um ensino chamado, precisamente, politécnico. A palavra é, toda ela, como se sabe, de origem grega: Poli = muito; technê = técnica. Na expressão, o poli pode ser interpretado em duplo sentido: no sentido de que, neste tipo de instituições, se ministra um ensino apenas técnico, muito técnico, exclusivamente ou especializadamente técnico e no sentido em que, nessas escolas, se ensinam e aprendem muitas e várias técnicas diversificadas. De qualquer modo, os dois sentidos encontram-se, evidentemente, inter-relacionados.23 Nesta acepção, a do sentido etimológico e literal da palavra, nada nos parece mais afastado do ideal grego de Paideia do que uma educação politécnica. O ideal de Paideia era uma educação total do homem como homem, uma educação humana e humanista, não uma educação especializada e marcadamente técnica. Total porquanto se almejava a formação do homem como homem e como cidadão, formando-se o carácter e valorizando-se, deste modo, a educação moral e cívica e não apenas a educação intelectual. Por outro lado, Paideia era entendida como cultura geral, formação geral, a única que convém ao homem como homem e como cidadão livre. Assim concebida, nada nos parece mais alheio ao ideal educativo grego do que, precisamente, uma educação dita politécnica.

Technê, em grego, significa técnica, ofício, habilidade, arte, ciência aplicada. Usava-se para "descrever qualquer habilidade no fazer, mais especificamente, uma espécie de competência profissional". (PETERS,1977:224) Os artífices ou artistas eram aqueles que dominavam uma determinada técnica, que possuíam um saber-fazer, isto é, um conhecimento que lhes proporcionava como saber fazer determinada coisa.

Não que os gregos desprezassem a técnica, mas distinguiam bem diversas classes de saberes. A este propósito, Aristóteles é o filósofo paradigmático, definindo claramente tipos de conhecimento distintos: o conhecimento empírico (empeiria), o conhecimento técnico (technê), o conhecimento prático (práxis) e o conhecimento teórico ou teorético (theoria). Todos eles são saber (sophia): a empeiria é um saber de experiências feito; a technê um saber como, um saber fazer24; a práxis um saber agir ou actuar e, por consequência um saber prático ou ético-moral; a theoria é saber pelo saber, saber pelo desejo de saber ou saber pelo amor ao próprio saber. Por isso, de todos, a theoria é o saber mais autêntico, constituindo a verdadeira sophia ou o verdadeiro conhecimento (episteme), porquanto é um saber que se busca por si mesmo, pelo próprio amor de saber, e não tendo em vista qualquer fim alheio a si mesmo, como é o caso dos outros tipos de saber, cujo fim é alheio ao próprio saber, instituindo-se, portanto, não como fins em si mesmos, mas fins para outra coisa; são saberes que se procuram pela sua utilidade, são, pois, meios para outros fins. Por isso também é que a verdadeira sophia, a theoria, conhecimento verdadeiro, episteme é só a filosofia - philo-sophia.

Aristóteles "distingue entre poiein, no sentido de 'produzir' (daí poietike episteme, ciência produtiva) e pratein (actuar), daí praktike episteme, ciência prática." (PETERS,1977:193-194) Ora, "o termo próprio que Aristóteles usou para a ciência produtiva ou aplicada é technê" e, para ele, "a poietike technê por excelência é a poética, à qual (...) dedicou todo um tratado" (PETERS,1977:194)

A técnica distingue-se, portanto, da prática, a primeira estando ligada ao fazer, no sentido de produzir (poiein) e a segunda ao actuar (pratein).25

E "tal como foi definida por Aristóteles (...) a technê é uma característica (...) mais dirigida à produção (poietike) do que à acção (praktike). Emerge da experiência (empeiria) de casos individuais e passa da experiência à technê quando as experiências individuais são generalizadas (...): o homem experimentado sabe como mas não sabe porquê (...). Assim, é um tipo de conhecimento e pode ser ensinado." (PETERS,1977:225-226) Se a técnica é um saber, é um saber como se faz, como se produz, é um saber aplicado ou ciência aplicada, mas porque se trata de um saber pode ser transmitido e ensinado. O sofista é, precisamente, alguém que possui uma técnica, um saber técnico: sabe como fazer belos discursos, sabe como manejar a palavra, sabe como convencer, sabe como argumentar. Dominando estes saberes ou estas técnicas, pode ensiná-las. Os sofistas aparecem, por isso, como técnicos, porque dominam um saber técnico especializado que transmitem. São, neste sentido, os primeiros politécnicos da história.

Mas o saber por excelência, o mais valorizado de todos é a theoria, o saber contemplativo e especulativo, que se busca a si mesmo, por si mesmo e em si mesmo. Ela constitui o tipo superior da actividade humana. Por isso, ela é o saber que mais convém ao homem como homem.

O sentido da paideia grega enquanto formação do homem como homem, enquanto formação geral de todo e qualquer homem, parece, pois, opor-se a uma formação especializada e meramente técnica. Ou, se preferirmos, uma educação técnica específica não dispensa, como seu suporte e fundamento, uma formação geral do homem enquanto homem, isto é, uma verdadeira paideia. Uma formação humanista como alicerce de uma formação técnica: eis o que exige a paideia grega. Não podemos deixar de considerar a pertinência e actualidade desta posição.

Não deixa de ser curioso que, no caso português, os Institutos Politécnicos tenham começado por integrar e abrir Escolas Superiores de Educação e só posteriormente Escolas Superiores de Tecnologia - que hoje, aliás, vão sendo cada vez mais procuradas, mais desenvolvidas e mais diversificadas e alargadas pela criação de mais cursos técnicos; exactamente o contrário do que se passa com as Escolas Superiores de Educação, diga-se de passagem. Será que, porque as Escolas Superiores de Educação aparecem integradas dentro do Ensino Politécnico, e dado o sentido etimológico e usual da palavra, não corremos o risco de encarar a educação apenas como uma técnica? Não haverá o perigo de considerar que a educação possa ser reduzida meramente a uma técnica? Que a formação de professores se reduza e se esgote numa mera formação técnica, esbatendo ou subalternizando a formação científica em que ela se deve fundar e esquecendo ou desvalorizando a formação humanística que constitui o seu horizonte e lhe confere todo o sentido e significado? Como se os professores e educadores fossem meramente técnicos e, portanto, pudessem ser apenas reduzidos ao estatuto de funcionários, como outros quaisquer funcionários! É que se a educação é uma ciência é também uma arte e uma arte não no mero sentido de técnica, mas no sentido de criatividade, de originalidade, de predisposição e de vocação, que lhe estão associados. Convém, por isso, relembrar o ideal grego e voltar ao genuíno sentido da paideia grega.


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* Professora-Adjunta da ESEV

Notas:
1 A romanização é o processo de aculturação ou enculturação dos povos conquistados, segundo o qual a cultura romana é difundida, estendida e inculcada em todos os territórios pertencentes ao império; mas se a cultura romana, que vai alastrar e se vai levar a todos os pontos do império, é já o resultado da fusão entre a cultura romana original e a cultura grega, segue-se que a romanização é também, embora indirectamente, uma forma de helenização. É assim e por esta via que, fundamentalmente, a cultura grega começa por exercer a sua influência na Europa.

Especificamente, em matéria de educação "O mesmo ideal triunfa em Roma (...) e é tudo isso que Roma e através dela o Ocidente romanizado herdam do helenismo. Bem entendido, esta transferência não acontece sem os retoques e as inflexões que lhe impõem o génio e a força próprios da tradição romana. A interpretação romana da Paideia (...) constitui na história humana uma etapa insubstituível, pois que ela serve de mediação, transmitindo à Europa moderna o sistema e a Pedagogia da Paideia grega." (MIALARET e VIAL: 1981, 187).

2 E as justificações que se dão para tal facto são do mesmo teor. Assim, o estudo da educação nos povos primitivos "... é de pouca utilidade para a formação do pedagogo actual (...)

A mesma consideração nos leva a pôr de lado o estudo da educação nos povos orientais, quer os do Extremo Oriente (chineses e hindús) quer os do Médio Oriente (egípcios, caldeus, persas e judeus)." (GOMES: 1967,9) E conclui o mesmo autor "...o estudo da educação nas civilizações orientais tem escasso interesse para a prática pedagógica actual. Iniciaremos, por isso, o nosso Curso com o estudo da educação na Grécia, e principalmente em Atenas..." (GOMES: 1967,10)

No mesmo sentido vão as afirmações seguintes: "Alguns autores consideram desnecessário o estudo da educação nos povos primitivos e nos povos da Antiguidade Oriental, por o seu valor educativo, hoje, sob o ponto de vista educativo, ser escasso (...)" E acrescenta o autor, "Seguindo um critério histórico, começaremos por dizer alguma coisa sobre tais sociedades, não esquecendo, no entanto, que a verdadeira educação nasceu na Grécia." (GUIMARÃES: 1974, 15)

3 Paideia e filosofia são, talvez, entre todas, as maiores e mais originais criações culturais do génio e do espírito gregos. A isso não é alheia, com certeza, a sua eterna presença e a sua tenaz influência, ao longo da história e até aos nossos dias, na cultura ocidental. A este propósito diz Werner Jaeger no Prólogo da obra que dedica à Paideia "o conhecimento essencial da educação (Paideia) grega constitui um fundamento indispensável para todo o conhecimento ou intento de educação actual." Mais à frente, afirma que "aprendemos muito dos gregos", e que "Isto aplica-se à criação mais bela do espírito grego, ao mais eloquente testemunho da sua estrutura ímpar: a filosofia." (JAEGER:,s.d., 11) Esta última posição é extremada em dois outros especialistas na cultura grega: "A menos que queiramos usar o termo em sentido tão lato que o esvaziemos de todo o sentido específico, não há provas de que a Filosofia jamais se tenha originado em qualquer parte, excepto sob a influência grega." (Burnet, The Legacy of Greece, cit. por PEREIRA: 1970. 201)

"Não quereríamos impedir ninguém de, por convicção ou por outros motivos políticos, elevar às alturas que lhe aprouver os clássicos hindus e chineses. Mas esses nada têm que ver com aquilo que, depois de Platão e Aristóteles, somos historicamente obrigados a chamar filosofia." (Gigon, Grundprobleme der antikem Philosophie cit. por PEREIRA: 1970, 201)

Parecem ser estes os legados mais substantivos que herdámos dos gregos: a ideia de Paideia e a invenção da filosofia.

4 "E esses sofistas, que são os únicos a apresentarem-se como professores de virtude (aretê) - crês que de facto o sejam?" (Platão, Ménon, 104)

5 Cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco, obra que Aristóteles dedica a seu filho Nicómaco, querendo seu pai que ele seja educado como um homem de bem, um homem bom, um homem virtuoso, isto é, um homem feliz. Na realidade, para o Estagirita, o valor fundamental da Ética é o Bem e o maior de todos os bens, o Supremo Bem, é a Felicidade. E a felicidade não é outra coisa senão ser-se aquilo que se é, ou seja, a suprema felicidade do homem consiste em tornar-se e em ser aquilo que o homem é na sua essência: animal racional, animal possuidor de logos. Sê o que és, comporta-te racionalmente como quem és, faz uso da tua razão - assim realizarás o supremo bem e serás feliz, eis o que Aristóteles ensina a seu filho e metaforicamente a todos os homens.

6 Não nos deteremos aqui na chamada Questão Homérica, que consiste no problema, até agora não resolvido, da autoria da Ilíada e da Odisseia, tratando-se de saber se ambos os poemas podem ser atribuídos a um mesmo autor ou se, pelo contrário, a autores vários.

7 Também a palavra aristeia, da mesma família etimológica, passou a designar a descrição dos combates valorosos entre dois guerreiros, narração essa que termina com o triunfo de um herói sobre o seu feroz adversário. Assim, por exemplo, a aristeia de Diomedes (canto V), a aristeia de Agamémnon (canto XI), a aristeia de Menelau (canto XVII), o duelo entre Ájax e Heitor (canto VII), a aristeia de Pátroclo, também chamada Patrocleia, (canto XVI), terminando com a morte deste às mãos de Heitor.

8 O termo aristocracia guarda ainda este sentido, enquanto o seu significado literal é "governo dos melhores".

9 Mas a justiça é, agora, concebida como a lei dos homens. Thémis era o termo utilizado nos Poemas Homéricos para justiça. Mas thémis é a justiça divina, a justiça estabelecida e distribuída pelos Deuses ou pelo Destino (moira). Como diz Heitor "Garanto-te que nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu destino, desde que nasceu." Na época clássica, Dykê será o termo que designa justiça, a justiça que é devida a cada um, e é a justiça que funda a eunomia, a boa ordem, a ordem estabelecida pela própria justiça, e a isonomia, a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, ou seja, a mesma justiça para todos.
10 Evidentemente que esta educação era exclusivamente dirigida a crianças livres do sexo masculino. A educação feminina é doméstica e a cargo da mãe, no gineceu. Será preciso esperar por Platão para vermos, pela primeira vez, defendida a educação para as mulheres.

11 Porque a educação em Esparta possui, como se sabe, características muito específicas, as quais são, como cremos, mais ou menos conhecidas, e porque, dada a sua peculiaridade, é um caso à parte que não tem repercussões nem influência significativa no ideal global da educação grega, não a trataremos aqui.
12 De facto, às representações trágicas assistia, em peso, toda a cidade e até os mais pobres podiam levantar gratuitamente os seus bilhetes.

13 Em passos seguintes, a expressão utilizada por Protágoras é já technê politikós (cf. Platão, Protágoras, 322 b in: PEREIRA, 1971,394-395.

Mas, como se sabe, ainda hoje está por resolver a questão de saber se a pedagogia é uma ciência ou uma arte. Ora, não foi como ciência, mas sim como arte (technê) que os sofistas encararam a educação.
14 Cf. PLATÃO, Protágoras, 349 a, onde se afirma que os sofistas pretendem "ensinar a virtude" (Paideusis kai aretês didaskalos), ou que afirmam "educar homens" (Paideuein antropous), como aparece na Apologia de Sócrates (19 e), ou ainda que se reclamam "possuir conhecimentos de aretê humana e política" (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 20 b. Na tradução portuguesa consultada ver pp. 69-70.
15 Neste sentido, pode talvez dizer-se que, com os sofistas, se realizou, pela primeira vez, o princípio da liberdade de ensinar e de aprender. De facto, eles ensinam aquilo em que, por opção sua, se tornaram especialistas (sophos) e só aceita os seus ensinamentos quem os deseja. Cf. PLATÃO, Protágoras, 318 e, onde o próprio Protágoras tece estas considerações: "- Os outros sobrecarregam os jovens. Quando estes procuram fugir de um tecnicismo excessivo, os sofistas forçam-nos a atirar-se sobre ele, ensinando-lhes o cálculo, a astronomia, a geometria e a música - e, ao mesmo tempo que dizia isto, lançava um olhar a Hípias - ao passo que quem vier ter comigo não estudará mais nada senão o assunto que o trouxe cá."
16 Porque a concepção e o modo de educação socrática já foi objecto de um outro artigo, abstemo-nos de o tratar aqui com mais detalhe. Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Sócrates..., in: MILLENIUM,1996,4, 38-55.

17 Também já nos referimos a Platão num outro artigo, para o qual remetemos o leitor, e embora aí o tema não fosse exactamente a educação tal como Platão a concebe, para não alongar mais este texto, guardamos para uma outra oportunidade o retorno a Platão. Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Ciências da Educação e Filosofia da Educação, in: MILLENIUM, 1997, 2, 119-126. (Ver, especificamente, p. 120)
18 A indissolubilidade destes conceitos, homem e educação, já foi realçada noutro texto: Cf. FONSECA, Maria de Jesus, Conceitos fundamentais subjacentes ao tema proposto, in: MILLENIUM, 1997, 6, 133-138.

19 Por isso é que o conteúdo desta formação geral se foi sucessivamente alargando: "no início era apenas a ginástica e a música mas o currículo estendeu-se à leitura e à escrita, depois à arte da palavra ou retórica e finalmente à arte de pensar ou filosofia." De qualquer modo, "o ponto de partida - ele vai deixar um traço profundo na própria concepção de ensino - é a formação desinteressada não visando a preparação para uma profissão mas simplesmente formar o carácter e o cidadão." (MIALARET e VIAL, 1981:29)
20 Só assim se compreende que Sócrates possa ser considerado o fundador da antropologia filosófica.
21 O sublinhado é nosso.

22 Parece oportuno relembrar aos poderes políticos que a educação se lhes impõe "como uma obrigação e um destino", como uma tarefa da qual não podem demitir-se, sob pena de fugirem à sua missão social que é a sua própria razão de ser. É verdade que, entre nós e na actual situação portuguesa, o poder político assegura a sua missão social e educativa, mas apenas e essencialmente no que respeita à Educação Básica, ao Ensino Básico que, por ser básico, é, necessariamente, universal e, corolariamente à sua universalidade, é obrigatório e gratuito. Mas o que dizer relativamente ao cumprimento dessas funções no que respeita aos outros níveis de ensino? Temos em vista, evidentemente, o caso mais flagrante, mais na ordem do dia, o mais discutido e aquele onde a guerra se instalou há já longo tempo - o caso do Ensino Superior. Com efeito, relativamente ao Ensino Superior, o Estado quer delegar-se e desresponsabilizar-se da sua função, considerando que é a ele, ensino superior, que compete fundamentalmente encontrar as suas próprias fontes de financiamento e, portanto, assegurar a sua subsistência ou mesmo a sua sobrevivência. "O Estado, liberto da sua missão social, que deveria ser a razão das suas funções, deixa à Universidade a 'liberdade' e o dever de angariar os seus próprios fundos, mercê de convénios realizados com as empresas e até do elevado pagamento de propinas. Daí que a autonomia universitária acabe por ser uma arma utilizada pelo Estado, não só para responsabilizar a Universidade pelos 'seus erros', mas também para justificar os baixos orçamentos que lhe são por ele atribuídos." (TORGAL, 1990:13) Ora, é entender do mesmo autor quanto nosso que "A Universidade tem de manter uma finalidade social (...). E o Estado não pode descomprometer-se da construção dessa finalidade, à luz dos princípios constitucionais que o regem" (TORGAL, 1990:14) e, sendo assim, é evidente que "A Autonomia da Universidade é uma conquista a preservar. Mas Autonomia não significa independência, nem desresponsabilidade do Estado." (TORGAL, 1990:16)

Retorquir-nos-ão que há que fazer escolhas e definir prioridades e que, por isso, há que assegurar o Ensino Básico porque só ele é básico, isto é, essencial e, também por isso, comum a todos. Responderemos que tudo depende do que se entende por básico. Será supérfluo, isto é, não será básico, para uma sociedade, assegurar uma formação integral, de nível superior, se não a todos pelo menos à maior parte dos seus membros, aqueles que o desejarem? Será excedentário e, portanto, muito para além do que é básico, formar cidadãos "com uma sólida preparação científica e cultural" (ponto 3 do art.º 11º da L.B.S.E.) ou com "uma sólida formação cultural e técnica de nível superior"? (ponto 4 do art.º 11º da L.B.S.E.) Será que isso não se repercutirá na própria sociedade, no seu desenvolvimento e no seu progresso? Será que, com isso, não promoveremos uma sociedade melhor?

23 Esta intercepção entre os dois sentidos referidos, constata-se na nossa LBSE onde, no ponto 2 do artº14º, se lê "O ensino politécnico realiza-se em escolas superiores especializadas nos domínios da tecnologia, das artes e da educação, entre outros." (O sublinhado é nosso.) Sendo assim, cada escola superior politécnica é especializada num determinado domínio e todas, no seu conjunto, ensinam, então, muitas e diversas técnicas.

24 De facto, o possuidor do saber técnico, sabe fazer, sabe como fazer, mas não sabe porque faz, isto é, não fundamenta o como no porquê, é incapaz de enquadrar o que faz e como o faz na razão de ser que lhe daria sentido e significado. Este desconhecimento do porquê, que suporta, legitima, ilumina, esclarece e funda o como se faz, implica que o saber técnico, assim concebido, seja um saber fundado apenas na experiência, no hábito, na rotina, na repetição mecânica dos mesmos gestos. Só a theoria permitiria explicar e compreender o como se faz, esclarecendo as razões do porque se faz assim e não de outro modo e, desta forma, só ela daria inteligibilidade ao como se faz.


25 "Segundo Aristóteles, quando as acções se seguem a uma escolha deliberada (proairesis) podem considerar-se morais ou imorais (...), e daí ciarem dentro do campo das ciências práticas" (episteme praktikai), isto é, ética e política, que têm como objecto o bem que é visado pela acção." (PETERS,1977:195) Cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco.


Fonte: http://www.ipv.pt/

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