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quinta-feira, 31 de maio de 2018

O ENCONTRO COM A OBRA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

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Luiz Rodrigues

RESUMO

Reina nos cursos das ciências sociais no Brasil uma simplificação explicativa da origem do país, um “des”-projeto de sociologia, simplificando relações sociais, deixando de lado as tradições culturais e não se voltando para origens comuns dos povos. A obra da Luís da Câmara Cascudo é o oposto, fundamenta todas as bases reais da constituição do povo brasileiro.

Palavras-chave: Luís da Câmara Cascudo, sociologia, Brasil.

“O essencial e lógico em doutrina científica é excluir o exclusivo”.


(Luís da Câmara Cascudo)

1. INTRODUÇÃO

No Brasil tentamos nos “educar” evitando ler, é uma alquimia digna dos intentos laboratoriais do Fausto de Goethe. O ler é uma das formas mais insubstituíveis de propagação da poesia da vida; Hölderlin dizia que “poeticamente o homem habita...”[1]. O não ler aliado à “plasticidade” da vida urbana moderna, distante desta poesia causa danos grandiosos à sociedade nossa. Devemos lamentar o desprezo pelas obras dos nossos grandes escritores, muito mais quando esse escritor dedica sua vida a catalogar e narrar as tradições de seu povo, longe nos sertões brasileiros.
Sobre os grandes ícones literários paira normalmente a fama decorrente do prestígio obtido e pelo simples fato de que fazemos parte da civilização humana e, portanto, as letras são um fator inarredável. A fama do escritor, seu exemplo, constituem a cultura dos povos; no Brasil isso não é diferente, quando nos tornamos nação, já na modernidade madura, concebemos uma literatura de altíssimo nível, as gerações do romantismo no Século XIX e a sociologia do Século XX se unem pelo elo comum da busca de nossas origens e o responder da pergunta sobre o que somos; depois de segunda metade deste último século esses assuntos ganharam uma conotação meramente economicista.
Relacionado a tudo isso persiste um drama histórico nesta modernidade, a leitura. Em 1876 a pena certeira de Machado de Assis (1994) asseverava:

– A nação não sabe ler. Há 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles: é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, – por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.

Passados 140 anos o país se agigantou economicamente, industrialização, interiorização, até universalização do ensino público, difusão das universidades por todo o território nacional.  Por outro lado a vontade, a santa vontade, de ler lega a capacidade de uma comparação; uma pesquisa feita por Fecomércio RJ/Ipsos em 2015 demonstrou que menos de 30% de nossa população tem o hábito de ler[2].
A falta de leitura que é a causa da degeneração social e mergulho em profunda criminalidade; de problemas com o voto, que persistem; metamorfoseara-se em discursos de violência; se antes não se lia livros se lia a vida, a natureza e o respeito às tradições, os contos tradicionais do Brasil catalogados por Cascudo eram elementos inestimáveis de educação. A violência brasileira é dialética, primeiro o linguajar agressivo, depois os atos, os tiros, os assaltos...
Machado se voltava para a questão da cidadania, dentro dos fundamentos da modernidade; é preciso universalizar a cidadania na busca do projeto de autonomia política dos indivíduos e da sociedade, o recebimento da instrução passa a ser encarado como essencial para o brotar do cidadão. É diferente das sociedades tradicionais, onde, a ignorância das massas era considerado fundamento da “ordem”.

“Para que a sociedade seja feliz e o povo tranquilo nas circunstâncias mais adversas, é necessário que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos [...]”. (MANDEVILLE in THOMPSON, 1998)

Num cenário assim cabe questionar sobre a importância dos grandes escritores para a cultura nacional. Qual o “nível” de memória legada aos grandes senhores das letras. Quando morreram, recentemente, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna, lembramos de termos visto matérias de jornais de televisão, uma profusão de postagens nas redes sociais, muitas delas por “carona”; arrisco a dizer que a morte do cantor americano Michael Jackson causou mais “comoção” do que a morte dos referidos escritores.
Luís da Câmara Cascudo suportou o preço de ser provinciano, como se considerava; nem mesmo partiu para os grandes centros brasileiros, hesitou em ficar num estado pobre e periférico do país, o que não lhe impedira de produzir uma obra magistral; agora, não resta dúvidas de que isso causa “pré-juízos” inúmeros. Como você, mesmo se for potiguar, descobriu Cascudo?
Dizem as más línguas nos chamar mais atenção o ponto de vista de um autor estrangeiro; sem pregar qualquer xenofobia literária, já que a escrita é um atributo humano, não tem fronteiras; sobre o mesmo ponto com o mesmo teor desperta mais interesse; tratar-se-ia de um complexo de inferioridade nem ao menos reprimida...Mas esses são temas de longa data dos cronistas impecáveis nossos...De Machado a mais recentemente João Ubaldo Ribeiro e tantos outros.


2. UM ENCONTRO AO ACASO

A primeira obra que este autor leu de Cascudo, Civilização e cultura, há bem pouco tempo antes da escrita deste artigo, fora escolhida por uma curiosidade nascida para solucionar a questão de quem, de fato, é o tal folclorista; uma busca no sistema eletrônico de bibliotecas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um título sugestivo propiciaram um encontro e uma confirmação.  Civilização e cultura é de deixar admirado quem conhece Cascudo apenas por um ouvir falar. Uma obra de etnografia geral, demonstrando a capacidade do provinciano de escrever um livro de envergadura universal. Nós do Rio Grande do Norte ouvimos muito falar e poucos leem, formam-se suposições vazias; a grande maneira de homenagear um escritor é lendo seus livros, muito mais do que nomeando ruas e praças...
Segundo o autor descreve, Civilização e cultura foi uma obra que sofreu contratempos, adiando sua publicação, os originais foram perdidos sendo achados tempos depois, e que texto magnífico! Uma etnografia bem trabalhada, repleta de variantes conceituais e temas filosófico-culturais, sempre dando um jeito de adentrar no cotidiano potiguar tão próximo da vida do autor.
O tema mais caro da obra cascudiana está presente: as culturas não morrem, mantêm-se nos costumes num imaginário popular “inconsciente”. Cascudo narra o costume de “roubar” a porta da casa do devedor vivenciado na capital do Rio Grande do Norte e depois encontrado em pesquisas como costume comum na Europa Central de 300 anos antes.

Nenhuma civilização desaparece completamente no mundo. Sobrevivem resíduos transmitidos às civilizações circunjacentes ou influenciadas distintamente, aglutinadas pela atração material dos semelhantes e gravitando nos sistemas idênticos e locais. (CASCUDO, 2004, p.161)


Há um humanismo por cima dos nacionalismos...Um recado de que cada cultura contribui para a história da civilização humana e de que cada sociedade lega às demais traços de sua cultura.

A cultura compreende o patrimônio tradicional de normas, doutrinas, hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração. (CASCUDO, 2004, p. 39)


O valor das raízes:

Imaginemos o quanto a obra de Cervantes é cara à Espanha, Shakespeare à Inglaterra e Homero à civilização Ocidental? Todos acima referidos, logicamente, trilharam o caminho da literatura, do romance e da poesia; mas o catalogar das tradições do nosso povo, os contos, as lendas, os mitos e as tradições fornecem as raízes de nossa formação e o espírito que nos movera enquanto povo.
Neste momento nossa educação (o educar) tem sido distorcido em programas vingativos, que olham para o passado como se fosse possível julgar cada época e os seus atos, desprezando, sobre pré-juízos tolos, todo um encontro de culturas. A política não pode definir o que se lê, mas sim a literatura que alimenta a política.
Dentre as obras mais brasileiras da produção no campo das ciências sociais e humanas estão, sem dúvida, os escritos de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo pelo fato de, justamente, não se resignarem com a história, souberam apreciar os frutos positivos de um grande encontro. Por isso mesmo, principalmente sobre a obra do sociólogo pernambucano, paira um “barramento político” impedindo as devidas reflexões literárias. Parecendo e querendo fazer parecer que esses autores serem favoráveis à escravidão, ao latifúndio, aos massacres indígenas por não quererem vingar o passado.
O preconceito sobre a obra de Gilberto Freyre, o manto da “democracia racial”. Impede de se prestigiar uma louvável defesa à miscigenação, o desprezo a qualquer tentativa de supremacia racial. Todos os povos produzem cultura, todos compartilham de uma origem comum repassada inconscientemente nas tradições.
A importância da leitura no seio da sociedade é uma determinante cultural, um hábito, um gosto; variando do âmbito coletivo ao desejo individual. Em sendo nossa propensão à leitura restringido por questões “culturais” ou problemas de ordem social (má educação formal) os ícones literários sofrem o drama do esquecimento (o não ser lido), o ser desconsiderado.
O que faz da obra de Cascudo fundamental para a interpretação do Brasil é o encontro do escritor acadêmico com o mundo popular, ou o Brasil oficial com o Brasil como dizia Machado de Assis; uma junção sem verticalidade, um encontro mágico. Os contos, as lendas, os costumes alimentares, o malandro Pedro Malazarte, depois interpretado por Roberto DaMatta (1997) numa antropologia mais ligada a uma crítica de ordem sócio-política.


4. CONCLUSÕES

Grandes escritores são fundamentais no processo educacional de uma nação; a educação da Grécia antiga se dividia em duas fases: uma homérica e outra da época dos filósofos no século V antes da idade usada no calendário gregoriano. Portanto, esse desprezo pelas grandes obras, mesmo de um escritor tão próximo, o desconhecimento, um lembrar apenas por uma fama corrente que não leva à leitura são caóticos. Assim ficaremos incapazes de resgatar uma produção literária decente, não há segredo, não se precisa de resumo, leia o livro.
Usamos a obra de Luís da Câmara Cascudo por sentirmos no Rio Grande do Norte uma incapacidade de leitura de alguém com uma obra tão expressiva a nível nacional e até universal, seja em um complexo de vira-latas, seja por uma preguiça de leitura; mesmo a Universidade Federal despreza essa obra, sucumbindo seus programas de ciências sociais a questões meramente de rebanho, forma-se para seguir e não para produzir nada, forma um discurso sem futuro.
As sociedades modernas se fundamental na informação e a informação essencial continua a ser as obras dos grandes escritores, não se substituirá o cérebro humano; literários ou científicos, o individual e o coletivo se encontra num “processo” filosófico de estar consigo mesmo (no diálogo platônico Teeteto a origem do conhecimento). O texto literário é indispensável por pertencer ao refletir individual e por se conjugar à toda produção que o autor encontre para ao máximo fundamentar sua obra, sem nunca conseguir preencher todas as lacunas sempre propiciando novas reflexões e a infinitude da literatura.
Uma nação moderna que não ler, nem mesmo aos seus grandes referenciais locais a uma morte de insignificância, sem brilhantismo da busca da imortalidade se perderá nos tempos. Por que o Brasil não fez acompanhar o seu progredir econômico com o cultural, registrando pelo contrário uma decadência deste último quesito; algo que não conseguimos explicar deixando-nos apenas estarrecidos mediante tamanha hipocrisia; nem compor uma música mais conseguimos; claro...não queremos nem saber quem somos...

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah.  Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
ASSIS, Machado. Analfabetismo. In: Crônicas Escolhidas. São Paulo: Editora Ática S.A, 1994.
CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura: pesquisas e notas de etnografia geral. São Paulo: Global editora, 2004.
______. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global editora, 2004.
______, Superstição no Brasil. São Paulo: Global editora, 2002.
______, História da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967.
______, Lendas brasileiras. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
______, O tempo e eu: confidências e proposições. Natal: Imprensa universitária, 1968.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FREYRE, Gilberto. Uma cultura ameaçada e outros ensaios. São Paulo: É realizações, 2010.
HÖLDERLIN, Friedrich. Hinos tardios. Tradução: Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
LÉVY, Pierre. A inteligencia coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2011.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.





EL ENCUENTRO COM LA OBRA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

ABSTRACT
Reina en los cursos de las ciencias sociales en Brasil una simplificación explicativa de la origen del país, un "des"-Proyecto de sociología, simplificando las relaciones sociales, dejando de lado las tradiciones culturales y no dedicándose a la origen común de los pueblos. La obra de Luis da Cascudo es lo contrario, fundamenta las bases reales de la constitución del pueblo brasileño.
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Keywords: Luís da Câmara Cascudo, sociologia, Brasil.



[1] No Ameno Azul... - Friedrich Hölderlin

"Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra"

No ameno azul floresce, com o seu telhado de metal, o campanário. À sua volta paira a gritaria das andorinhas, rodeia-o o azul mais comovente. O sol ergue-se, alto, sobre ele, e dá cor à chapa metálica, mas é no seu cimo que, ao vento, suavemente, canta o catavento. Quando alguém então desce para o patamar do sino, por aqueles degraus, há uma vida silenciosa, pois quando a sua figura está assim tão isolada, sobressai a plasticidade do homem. As janelas em que os sinos tocam são como arcos de beleza. Pois os arcos ainda imitam a Natureza, são semelhantes às árvores da floresta. E o que é puro também é belo. No interior, da diversidade surge um espírito sério. E as imagens são tão simples, tão santas, que muitas vezes verdadeiramente se teme descrevê-las. Porém os Celestiais, que são sempre bondosos, uma vez que tudo têm, como os ricos, possuem a virtude e a alegria. O homem pode imitá-los. Mas poderá o homem, quando toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer o olhar e dizer: assim quero eu ser também? Sim. Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isto creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. E no entanto a sombra da noite e as estrelas não são, se é que posso dizê-lo, mais puras do que o homem, como imagem que é da divindade. Haverá na Terra uma medida? Não, não há. É que os mundos do Criador jamais inibem o curso do trovão. Também uma flor é bela porque floresce sobre o sol. O olhar encontra muitas vezes ao longo da vida seres que seriam mais belos de nomear que as flores. Oh, como o sei bem! Pois agradará a Deus que a figura e o coração sangrem e que se deixe completamente de existir? Mas a alma, tal como penso, deve permanecer pura, pois assim chega ao que é poderoso sobre as asas de águias como um cântico de louvor e com a voz de muitas aves. (HÖLDERLIN, 200)
[2] http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/04/08/queda-no-habito-de-leitura-revela-dificuldade-de-formar-leitores-no-brasil-175698.php

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