Luiz Rodrigues
RESUMO
Reina
nos cursos das ciências sociais no Brasil uma simplificação explicativa da
origem do país, um “des”-projeto de sociologia, simplificando relações sociais,
deixando de lado as tradições culturais e não se voltando para origens comuns
dos povos. A obra da Luís da Câmara Cascudo é o oposto, fundamenta todas as
bases reais da constituição do povo brasileiro.
Palavras-chave: Luís
da Câmara Cascudo, sociologia, Brasil.
“O essencial e
lógico em doutrina científica é excluir o exclusivo”.
(Luís da Câmara Cascudo)
1.
INTRODUÇÃO
No Brasil tentamos nos
“educar” evitando ler, é uma alquimia digna dos intentos laboratoriais do
Fausto de Goethe. O ler é uma das formas mais insubstituíveis de propagação da
poesia da vida; Hölderlin dizia que “poeticamente o homem habita...”[1].
O não ler aliado à “plasticidade” da vida urbana moderna, distante desta poesia
causa danos grandiosos à sociedade nossa. Devemos lamentar o desprezo pelas
obras dos nossos grandes escritores, muito mais quando esse escritor dedica sua
vida a catalogar e narrar as tradições de seu povo, longe nos sertões
brasileiros.
Sobre os grandes ícones
literários paira normalmente a fama decorrente do prestígio obtido e pelo
simples fato de que fazemos parte da civilização humana e, portanto, as letras
são um fator inarredável. A fama do escritor, seu exemplo, constituem a cultura
dos povos; no Brasil isso não é diferente, quando nos tornamos nação, já na
modernidade madura, concebemos uma literatura de altíssimo nível, as gerações
do romantismo no Século XIX e a sociologia do Século XX se unem pelo elo comum
da busca de nossas origens e o responder da pergunta sobre o que somos; depois
de segunda metade deste último século esses assuntos ganharam uma conotação
meramente economicista.
Relacionado a tudo isso
persiste um drama histórico nesta modernidade, a leitura. Em 1876 a pena
certeira de Machado de Assis (1994) asseverava:
– A nação não
sabe ler. Há 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns
9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é
ignorar o Sr. Meireles Queles: é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o
que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do
mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê. Votam como vão à festa da
Penha, – por divertimento. A constituição é para eles uma coisa inteiramente
desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.
Passados 140 anos o país
se agigantou economicamente, industrialização, interiorização, até
universalização do ensino público, difusão das universidades por todo o
território nacional. Por outro lado a
vontade, a santa vontade, de ler lega a capacidade de uma comparação; uma pesquisa
feita por Fecomércio RJ/Ipsos em 2015 demonstrou que menos de 30% de nossa
população tem o hábito de ler[2].
A falta de leitura que
é a causa da degeneração social e mergulho em profunda criminalidade; de
problemas com o voto, que persistem; metamorfoseara-se em discursos de
violência; se antes não se lia livros se lia a vida, a natureza e o respeito às
tradições, os contos tradicionais do Brasil catalogados por Cascudo eram
elementos inestimáveis de educação. A violência brasileira é dialética, primeiro
o linguajar agressivo, depois os atos, os tiros, os assaltos...
Machado se voltava para
a questão da cidadania, dentro dos fundamentos da modernidade; é preciso
universalizar a cidadania na busca do projeto de autonomia política dos
indivíduos e da sociedade, o recebimento da instrução passa a ser encarado como
essencial para o brotar do cidadão. É diferente das sociedades tradicionais,
onde, a ignorância das massas era considerado fundamento da “ordem”.
“Para que a
sociedade seja feliz e o povo tranquilo nas circunstâncias mais adversas, é
necessário que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento não só
amplia como multiplica nossos desejos [...]”. (MANDEVILLE in THOMPSON, 1998)
Num cenário assim cabe
questionar sobre a importância dos grandes escritores para a cultura nacional.
Qual o “nível” de memória legada aos grandes senhores das letras. Quando
morreram, recentemente, João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna, lembramos de
termos visto matérias de jornais de televisão, uma profusão de postagens nas
redes sociais, muitas delas por “carona”; arrisco a dizer que a morte do cantor
americano Michael Jackson causou mais “comoção” do que a morte dos referidos
escritores.
Luís da Câmara Cascudo
suportou o preço de ser provinciano, como se considerava; nem mesmo partiu para
os grandes centros brasileiros, hesitou em ficar num estado pobre e periférico
do país, o que não lhe impedira de produzir uma obra magistral; agora, não
resta dúvidas de que isso causa “pré-juízos” inúmeros. Como você, mesmo se for
potiguar, descobriu Cascudo?
Dizem as más línguas
nos chamar mais atenção o ponto de vista de um autor estrangeiro; sem pregar
qualquer xenofobia literária, já que a escrita é um atributo humano, não tem
fronteiras; sobre o mesmo ponto com o mesmo teor desperta mais interesse;
tratar-se-ia de um complexo de inferioridade nem ao menos reprimida...Mas esses
são temas de longa data dos cronistas impecáveis nossos...De Machado a mais
recentemente João Ubaldo Ribeiro e tantos outros.
2.
UM ENCONTRO AO ACASO
A primeira obra que
este autor leu de Cascudo, Civilização e cultura, há bem pouco tempo antes da
escrita deste artigo, fora escolhida por uma curiosidade nascida para
solucionar a questão de quem, de fato, é o tal folclorista; uma busca no
sistema eletrônico de bibliotecas da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte e um título sugestivo propiciaram um encontro e uma confirmação. Civilização e cultura é de deixar admirado
quem conhece Cascudo apenas por um ouvir falar. Uma obra de etnografia geral, demonstrando
a capacidade do provinciano de escrever um livro de envergadura universal. Nós
do Rio Grande do Norte ouvimos muito falar e poucos leem, formam-se suposições
vazias; a grande maneira de homenagear um escritor é lendo seus livros, muito
mais do que nomeando ruas e praças...
Segundo o autor
descreve, Civilização e cultura foi uma obra que sofreu contratempos, adiando
sua publicação, os originais foram perdidos sendo achados tempos depois, e que
texto magnífico! Uma etnografia bem trabalhada, repleta de variantes
conceituais e temas filosófico-culturais, sempre dando um jeito de adentrar no
cotidiano potiguar tão próximo da vida do autor.
O tema mais caro da
obra cascudiana está presente: as culturas não morrem, mantêm-se nos costumes
num imaginário popular “inconsciente”. Cascudo narra o costume de “roubar” a
porta da casa do devedor vivenciado na capital do Rio Grande do Norte e depois
encontrado em pesquisas como costume comum na Europa Central de 300 anos antes.
Nenhuma civilização desaparece completamente
no mundo. Sobrevivem resíduos transmitidos às civilizações circunjacentes ou
influenciadas distintamente, aglutinadas pela atração material dos semelhantes
e gravitando nos sistemas idênticos e locais. (CASCUDO, 2004, p.161)
Há um humanismo por
cima dos nacionalismos...Um recado de que cada cultura contribui para a
história da civilização humana e de que cada sociedade lega às demais traços de
sua cultura.
A cultura compreende o patrimônio tradicional de normas, doutrinas, hábitos, acúmulo de material herdado e acrescido pelas aportações inventivas de cada geração. (CASCUDO, 2004, p. 39)
O
valor das raízes:
Imaginemos o quanto a
obra de Cervantes é cara à Espanha, Shakespeare à Inglaterra e Homero à
civilização Ocidental? Todos acima referidos, logicamente, trilharam o caminho
da literatura, do romance e da poesia; mas o catalogar das tradições do nosso
povo, os contos, as lendas, os mitos e as tradições fornecem as raízes de nossa
formação e o espírito que nos movera enquanto povo.
Neste momento nossa
educação (o educar) tem sido distorcido em programas vingativos, que olham para
o passado como se fosse possível julgar cada época e os seus atos, desprezando,
sobre pré-juízos tolos, todo um encontro de culturas. A política não pode definir
o que se lê, mas sim a literatura que alimenta a política.
Dentre as obras mais
brasileiras da produção no campo das ciências sociais e humanas estão, sem
dúvida, os escritos de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo pelo fato de,
justamente, não se resignarem com a história, souberam apreciar os frutos
positivos de um grande encontro. Por isso mesmo, principalmente sobre a obra do
sociólogo pernambucano, paira um “barramento político” impedindo as devidas
reflexões literárias. Parecendo e querendo fazer parecer que esses autores
serem favoráveis à escravidão, ao latifúndio, aos massacres indígenas por não
quererem vingar o passado.
O preconceito sobre a
obra de Gilberto Freyre, o manto da “democracia racial”. Impede de se
prestigiar uma louvável defesa à miscigenação, o desprezo a qualquer tentativa
de supremacia racial. Todos os povos produzem cultura, todos compartilham de
uma origem comum repassada inconscientemente nas tradições.
A importância da
leitura no seio da sociedade é uma determinante cultural, um hábito, um gosto;
variando do âmbito coletivo ao desejo individual. Em sendo nossa propensão à
leitura restringido por questões “culturais” ou problemas de ordem social (má
educação formal) os ícones literários sofrem o drama do esquecimento (o não ser
lido), o ser desconsiderado.
O que faz da obra de
Cascudo fundamental para a interpretação do Brasil é o encontro do escritor
acadêmico com o mundo popular, ou o Brasil oficial com o Brasil como dizia
Machado de Assis; uma junção sem verticalidade, um encontro mágico. Os contos,
as lendas, os costumes alimentares, o malandro Pedro Malazarte, depois
interpretado por Roberto DaMatta (1997) numa antropologia mais ligada a uma
crítica de ordem sócio-política.
4.
CONCLUSÕES
Grandes escritores são
fundamentais no processo educacional de uma nação; a educação da Grécia antiga
se dividia em duas fases: uma homérica e outra da época dos filósofos no século
V antes da idade usada no calendário gregoriano. Portanto, esse desprezo pelas
grandes obras, mesmo de um escritor tão próximo, o desconhecimento, um lembrar
apenas por uma fama corrente que não leva à leitura são caóticos. Assim
ficaremos incapazes de resgatar uma produção literária decente, não há segredo,
não se precisa de resumo, leia o livro.
Usamos a obra de Luís da
Câmara Cascudo por sentirmos no Rio Grande do Norte uma incapacidade de leitura
de alguém com uma obra tão expressiva a nível nacional e até universal, seja em
um complexo de vira-latas, seja por uma preguiça de leitura; mesmo a
Universidade Federal despreza essa obra, sucumbindo seus programas de ciências
sociais a questões meramente de rebanho, forma-se para seguir e não para
produzir nada, forma um discurso sem futuro.
As sociedades modernas
se fundamental na informação e a informação essencial continua a ser as obras
dos grandes escritores, não se substituirá o cérebro humano; literários ou
científicos, o individual e o coletivo se encontra num “processo” filosófico de
estar consigo mesmo (no diálogo platônico Teeteto a origem do conhecimento). O
texto literário é indispensável por pertencer ao refletir individual e por se
conjugar à toda produção que o autor encontre para ao máximo fundamentar sua
obra, sem nunca conseguir preencher todas as lacunas sempre propiciando novas
reflexões e a infinitude da literatura.
Uma nação moderna que
não ler, nem mesmo aos seus grandes referenciais locais a uma morte de
insignificância, sem brilhantismo da busca da imortalidade se perderá nos
tempos. Por que o Brasil não fez acompanhar o seu progredir econômico com o cultural,
registrando pelo contrário uma decadência deste último quesito; algo que não
conseguimos explicar deixando-nos apenas estarrecidos mediante tamanha
hipocrisia; nem compor uma música mais conseguimos; claro...não queremos nem
saber quem somos...
REFERÊNCIAS
ARENDT,
Hannah. Responsabilidade
e julgamento. São Paulo: Companhia das letras, 2004.
ASSIS,
Machado. Analfabetismo. In: Crônicas
Escolhidas. São Paulo: Editora Ática S.A, 1994.
CASCUDO, Luís
da Câmara. Civilização e cultura:
pesquisas e notas de etnografia geral. São Paulo: Global editora, 2004.
______. Contos tradicionais do Brasil. São
Paulo: Global editora, 2004.
______, Superstição no Brasil. São Paulo:
Global editora, 2002.
______, História da alimentação no Brasil. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967.
______, Lendas brasileiras. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.
______, O tempo e eu: confidências e
proposições. Natal: Imprensa universitária, 1968.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FREYRE,
Gilberto. Uma cultura ameaçada e outros
ensaios. São Paulo: É realizações, 2010.
HÖLDERLIN,
Friedrich. Hinos tardios. Tradução: Maria Teresa Dias Furtado.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
LÉVY, Pierre. A inteligencia coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 2011.
TOURAINE,
Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1995.
THOMPSON,
E.P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
EL
ENCUENTRO COM LA OBRA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
ABSTRACT
Reina en los cursos de las ciencias sociales en Brasil
una simplificación explicativa de la origen del país, un
"des"-Proyecto de sociología, simplificando las relaciones sociales,
dejando de lado las tradiciones culturales y no dedicándose a la origen común
de los pueblos. La obra de Luis da Cascudo es lo contrario, fundamenta las
bases reales de la constitución del pueblo brasileño.
.
Keywords: Luís
da Câmara Cascudo, sociologia, Brasil.
[1]
No Ameno Azul... - Friedrich
Hölderlin
"Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta
Terra"
No
ameno azul floresce, com o seu telhado de metal, o campanário. À sua volta
paira a gritaria das andorinhas, rodeia-o o azul mais comovente. O sol ergue-se,
alto, sobre ele, e dá cor à chapa metálica, mas é no seu cimo que, ao vento,
suavemente, canta o catavento. Quando alguém então desce para o patamar do
sino, por aqueles degraus, há uma vida silenciosa, pois quando a sua figura
está assim tão isolada, sobressai a plasticidade do homem. As janelas em que os
sinos tocam são como arcos de beleza. Pois os arcos ainda imitam a Natureza,
são semelhantes às árvores da floresta. E o que é puro também é belo. No
interior, da diversidade surge um espírito sério. E as imagens são tão simples,
tão santas, que muitas vezes verdadeiramente se teme descrevê-las. Porém os
Celestiais, que são sempre bondosos, uma vez que tudo têm, como os ricos,
possuem a virtude e a alegria. O homem pode imitá-los. Mas poderá o homem, quando
toda a sua vida está cheia de trabalhos, erguer o olhar e dizer: assim quero eu
ser também? Sim. Enquanto a amabilidade pura habitar no seu coração não será
uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido?
Será manifesto como o Céu? Antes isto creio. É a medida do homem. Cheio de
mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra. E no entanto a sombra
da noite e as estrelas não são, se é que posso dizê-lo, mais puras do que o
homem, como imagem que é da divindade. Haverá na Terra uma medida? Não, não há.
É que os mundos do Criador jamais inibem o curso do trovão. Também uma flor é
bela porque floresce sobre o sol. O olhar encontra muitas vezes ao longo da
vida seres que seriam mais belos de nomear que as flores. Oh, como o sei bem!
Pois agradará a Deus que a figura e o coração sangrem e que se deixe
completamente de existir? Mas a alma, tal como penso, deve permanecer pura,
pois assim chega ao que é poderoso sobre as asas de águias como um cântico de
louvor e com a voz de muitas aves. (HÖLDERLIN, 200)
[2] http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/04/08/queda-no-habito-de-leitura-revela-dificuldade-de-formar-leitores-no-brasil-175698.php
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