Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e da Agricultura
Solange Monteiro, de São Paulo
A Constituição completa 30 anos em meio a um clima de ressentimento da sociedade tanto no campo social quanto político. Que parte desse problema está relacionada com a Carta Magna brasileira?
Nenhuma. A Constituição é bastante razoável, tem a filosofia de uma sociedade civilizada. Foi feita depois de um estelionato eleitoral gigantesco, que deu para o MDB maioria nas duas casas. Eram pessoas que tinham sido incomodadas pelo regime autoritário, portanto, tinham como objetivo fundamental proteger os direitos individuais da ação do Estado. E por isso a Constituição é tão detalhista: para não ser interpretada. Ela também reflete a busca por igualdade de oportunidades. Por isso trata de saúde e educação universais – não gratuitas, mas paga por todos. Mas para se gozar de liberdade e igualdade de oportunidades, também é preciso ter um mecanismo de produção eficiente. Esses três valores, que não são inteiramente compatíveis, é que controlam essa dinâmica. Houve muitos equívocos no caminho. Talvez o maior deles tenha sido o seguinte: antes da Constituição, saúde, educação, saneamento e segurança eram deveres do Estado. Na Constituição, isso virou direitos do cidadão e, sendo assim, produziu a judicialização de toda a atividade. Por exemplo, se estou hoje com um problema de saúde e reclamo o direito a um tratamento que custa US$ 1 milhão, o juiz não leva em consideração que a dotação na saúde é constante – e não tem como fazê-lo. Então, vou salvar um sujeito e matar outros 99. Ou seja, aqui começa um problema sério de coordenação das receitas com as despesas que vai piorando com a liberdade financeira do Legislativo, a liberdade financeira do Judiciário... Tudo isso é muito bonito, mas a caixa é uma só.
A ideia de que financiar o contrato social da Constituição, como descrito por Samuel Pessôa, comprometa nosso crescimento faz parte desse diagnóstico?
O pacto social que está na Constituição é excelente, mas é mal compreendido. Ele propicia um abuso de poder. É preciso ter um sistema em que o orçamento seja o balizamento geral da situação econômica. Não adianta imaginar que se possa ter um sistema em que a dívida pública cresça permanentemente. A dívida pública com relação ao PIB tem que ter um limite. Nada disso está implícito na Constituição. Não está implícito que você tenha que ter aposentadorias diferentes. Isso foi produto da forma como foi se compondo o processo eleitoral. Portanto, as consequências estão no Congresso. E o que é o Congresso hoje? Ele tem muito pouco a ver com a sociedade, pois é constituído de corporações. Olhe o caso do famoso grupo das classes laboriosas, rural e urbana, que produz um Funrural como esse, um Refis como fizeram, com 81 deputados que se beneficiaram reduzindo suas próprias dívidas. Não sei como isso não chegou ao Supremo, para mostrar que esses votos não poderiam ter acontecido. O regimento impede. No caso do Funrural, foram R$ 17 bilhões para eles mesmos, em nome do coitado do trabalhador rural. E você tem outra coisa fantástica, numa sociedade laica, uma bancada evangélica que só cresce. Ou seja, corporações que se protegem mutuamente, que protegem os direitos “mal adquiridos”. Nada disso está na Constituição.
Veja, fazem pelo menos 30 anos que o Brasil cresce menos que o mundo. Está em plena regressão, porque fomos perdendo a capacidade de administrar. Na próxima eleição, talvez uma solução seja que o presidente eleito, não importa quem, seja capaz de produzir um concílio. No dia da posse, enquanto todos estiverem tomando champanhe, ele reúna os três cardeais – ele próprio, o presidente do Judiciário e o do Legislativo –, e pactue voltar a obedecer a Constituição, que prevê esses três poderes como independentes, mas também harmônicos.
Na Constituinte, o senhor votou a favor do parlamentarismo. Ainda considera que seria a melhor opção para o Brasil, posto que o atual presidencialismo de coalizão também é identificado como indutor desses desajustes?
O presidencialismo de coalizão é um desastre. Essa Constituição foi feita para o parlamentarismo, e estou convencido de que seria o sistema ideal. Teríamos que ter um parlamentarismo e eleição distrital mista com lista fechada. Uma coisa civilizada, porque é a única forma de desmontar as corporações. Hoje, estas não têm maioria no distrito; conseguem maioria porque o atual distrito é um estado, e contam com estratégia eleitoral. Uma igreja, por exemplo, sabe quantos votos tem e maximiza o valor daqueles votos. Não conta com ninguém que tenha 600 mil votos; mas há seis com 100 mil. É a velha técnica do Partido Comunista. Como o distrito é imenso, você pode, desde que tenha condições de comunicação, organizar sua eleição. E é o que está acontecendo. Já com o voto distrital, não tem como fazer isso. E assim se transformaria o Congresso numa coisa mais próxima dos desejos da sociedade.
Infelizmente, entretanto, não vejo como sugerir isso hoje. Mas uma coisa que eu acho que podíamos – e devíamos – fazer é uma curetagem na Constituição. Deixá-la com 25 artigos. Tirar dela todos os constrangimentos que construímos, porque este é o ponto central: a Constituição foi feita para impedir que o Executivo fizesse alguma coisa, pois foi feita por quem não acreditava que o Executivo pudesse ser sério. E isso produziu o que está aí.
Como melhorar o presidencialismo de coalizão que temos?
Precisamos de um presidente musculoso. O artigo primeiro da Constituição diz que todo poder emana do povo, e em nome dele será exercido. Diretamente ou indiretamente. Quem é o único que nesse processo eletivo tem a maioria? Só o presidente. Pode até ser eleito com apenas um terço dos votos mais um. Nas últimas eleições, muitos não votaram, mas o fato de uma parcela abdicar de sua cidadania não torna a eleição ilegítima. Então, o presidente será legitimamente o portador da maioria, e ainda precisará que tanto Legislativo quanto Judiciário compreendam que existem limites físicos. Precisamos atacar o grande problema que existe, de não voltarmos a crescer. Crescer é aumentar a quantidade de bens de produção à disposição de cada trabalhador. Isso significa que você tem que investir anualmente mais do que você consome na depreciação do seu estoque de capital. E compreender que fazem cinco ou seis anos que o investimento líquido é negativo, que não chega a pagar a depreciação do capital. Estamos em pleno subdesenvolvimento.
Como considera que o próximo presidente deve lidar com a emenda constitucional do teto dos gastos e a Previdência?
Algum controle de teto de gastos tem que haver, é possível ajustá-lo. Se simplesmente for eliminado, vai piorar o controle. Estamos brincando com fogo. Na Previdência, não há o que fazer, a demografia não perdoa. É visível que estamos indo para o buraco. E o mais grave: comprometendo investimentos que são fundamentais. Outro dia vocês fizeram um trabalho muito bom sobre saneamento (capa daConjuntura Econômica de agosto), que é um investimento absolutamente fundamental. É o suporte para educação e saúde, e por isso talvez seja a prioridade número 1. Pois qual é a sociedade que precisamos? É uma em que o indivíduo, não importa onde ele nasça, tenha o direito de construir seu aparato de apreensão do mundo pelo menos para partir igual. Isso é que dá igualdade de oportunidades: cuidando de mãe e criança até os quatro, cinco anos, para que quando essa criança começar a vida a partir daí tenha um aparato parecido com o dos demais. Depois, a vida decide. De qualquer forma, é muito difícil convencer as pessoas de que existem restrições físicas. A maioria não acredita na contabilidade nacional. As pessoas não sabem que no fim de tudo você tem um produto que só tem dois usos: ou se investe, ou se consome, e que o crescimento depende da relação entre essas duas coisas. Se eu aumento o consumo presente, encurto o investimento e estou reduzindo o consumo futuro. Se eu aumento o investimento presente ou mantenho o crescimento presente, estou criando as condições para o aumento do consumo no futuro. Essa equação é incontornável.
Leia a entrevista na íntegra na edição de setembro.
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