Pedro Abel Vieira, Elísio Contini, Gilmar Henz e Virgínia Nogueira
Pesquisadores da Embrapa
A desagregação do mundo socialista e o fim da guerra fria contribuíram para que os Estados Unidos passassem a dividir o poder com as economias em ascensão do Japão, da União Europeia e da China, configurando um novo equilíbrio mundial multipolar, ainda não consolidado. Enquanto o sistema econômico se tornou global e a era digital vem substituindo a industrial, a estrutura política permanece calcada no conceito de estado-nação, gerando um cenário de indefinições, no qual a questão ideológica (capitalismo versus socialismo) ainda está presente. Essas indefinições não afetam apenas questões econômicas, mas também alianças entre as nações pelo grau de afinidade econômico-comercial.
Independentemente dessa indefinição, a ascensão econômica de países asiáticos populosos e com baixa capacidade de expandir as suas produções agrícolas deixa claro que a produção de alimentos será um importante vetor do poder da geopolítica, substituindo, ao menos parcialmente, o poder que a energia conferiu a alguns países no passado, a exemplo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).
A hipótese do ‘poder dos alimentos’ não é nova. A segurança alimentar é estratégica para as sociedades e, historicamente, foi causa de várias instabilidades. Políticas alimentares são intervenções complexas e mediadas por múltiplos atores e interesses. Agências internacionais, governos, consumidores, empresas e instituições científicas desempenham papéis estratégicos na definição de alternativas por meio de diferentes mecanismos e arenas, fazendo com que desequilíbrios de poder e de informação tenham impacto no processo decisório.
Em grande parte, isso se deve ao surgimento de um mercado global relativamente bem integrado, às transformações no processo de industrialização e comercialização de alimentos, às mudanças tecnológicas no campo e à crescente urbanização acompanhada da estrutura das redes sociais. Se, tradicionalmente, a agricultura dominou a política alimentar, atualmente as indústrias e os serviços tendem a impactar os padrões de produção e consumo favorecendo, assim, o crescimento das regulações privadas. Como exemplos, vale citar as campanhas em prol da saúde, da alimentação saudável e do meio ambiente, o fortalecimento da educação de hábitos alimentares, a elaboração de diretrizes e a regulação da publicidade dos produtos alimentícios.
Nesse cenário, talvez o Brasil talvez seja o país com maior responsabilidade sobre a estabilidade na política global. Não há dúvidas de que o Brasil desenvolveu capacitações básicas para sustentar o crescimento da agricultura e atender as expectativas de parte da demanda futura de alimentos. A questão é de que forma o mundo percebe a reputação brasileira, especialmente quando o jogo não é disputado apenas com base em competências básicas, disponibilidade de terras, tecnologia e know how. Envolve também uma dimensão política, que, no final, determina as regras do jogo e as condições de competir. A reflexão proposta é se o país está de fato preparado — ou, pelo menos, se preparando — para o pesado jogo da política internacional que, cada vez mais, afeta o comércio agrícola internacional e tem na reputação a sua base.
A prática do comércio internacional ensina que a reputação dos produtos agrega valor e que essa característica não é uma dádiva, mas uma construção de longo prazo, envolvendo etapas e ações de inúmeras instituições, iniciando-se pela produção de dados e informações que embasem as discussões. Negociações internacionais embasadas em estudos e fatos reais constituem-se em poderoso instrumento para a construção da reputação.
Nesta discussão tratamos de duas formas básicas de reputação para produtos do agronegócio: qualidade e diferencial. Qualidade compreende atributos de valor relacionados à saudabilidade (nutrição e saúde), sabor, conveniência, e, principalmente, ausência de contaminantes que comprometam a saúde dos consumidores. A diferenciação indica agregação de valor a um produto em relação a potenciais concorrentes, como denominação de origem e certificações. Um exemplo clássico mundial de diferenciação é o espumante Champanhe, originário de região da França, cujo valor de mercado é superior aos demais concorrentes.
Se o produto, principalmente alimento, carece de reputação, o mercado tende a rejeitá-lo e/ou reduzir seu preço. Os produtos do agronegócio brasileiro têm bom conceito no mercado interno, não só pelo preço, mas também pela qualidade. Um exemplo da reputação positiva do produto nacional é a preferência do brasileiro por frutas nacionais frescas, destacando-se a maçã. Um caso emblemático de reputação positiva do produto importado sobre o nacional é a dos vinhos, em que os importados têm a preferência dos consumidores brasileiros. Ou seja, reconhecem-se progressos realizados pela enologia nacional nos últimos anos, mas considera-se que são insuficientes para demonstrar atributos de qualidade e diferenciação.
O Brasil construiu um pujante setor agrícola numa primeira fase, voltado ao abastecimento interno e posteriormente também para as exportações. O Brasil também diversificou a pauta de exportações em termos de número de produtos e destinos. Lá se vai o tempo em que as exportações dependiam apenas de café, açúcar e cacau. Na atualidade, além do café e açúcar, o país é líder nas exportações de suco de laranja, soja, carnes de frango e bovina, e ocupa o segundo lugar em milho e óleo de soja. A diversificação da pauta de exportações agrícolas do Brasil confere maior estabilidade à geração de divisas, o que contribuiu para alcançar a reputação de potência agrícola. Porém, se por um lado esse reconhecimento é gratificante aos brasileiros, por outro aguça a competição e as barreiras ao produto brasileiro no exterior, reforçando assim a necessidade de se incrementar a imagem do agro nacional.
A primeira ação para a construção de reputação (positiva) dos produtos agrícolas do Brasil é neutralizar as percepções negativas no exterior. Duas dessas percepções são disseminadas em muitas partes do globo: a questão ambiental, com forte apelo contra o desmatamento, principalmente na Amazônia; e a questão social, consubstanciada na ideia de que a agricultura brasileira utiliza ainda trabalho escravo. Verdades ou meias-verdades, essas questões podem afetar tanto as quantidades exportadas como o valor dos produtos.
A barreira ambiental já vem sendo enfrentada com maestria pelo setor agrícola do Brasil. O Código Florestal Brasileiro garante que o setor privado preserve, no mínimo, 20% dos biomas naturais. Além dessa garantia inédita no mundo, sistemas agrícolas integrados, o uso de microrganismos em substituição a produtos químicos, o plantio direto, etc. possibilitaram, nos últimos 10 anos, que a pecuária do Brasil reduzisse a emissão de gases do efeito estufa (GEE) por tonelada de carne produzida a uma taxa de 4,5% ao ano.
Quanto à questão ambiental, a agricultura do Brasil ocupa posição confortável em relação à realidade de países como EUA, Argentina e Canadá, pois, a despeito de alguns problemas como o desmatamento, o Brasil dispõe de tecnologias, sistemas de produção, políticas públicas e instituições que garantem a sua boa reputação ambiental. Já quanto à questão social, a posição da agricultura brasileira no exterior não é tão confortável. Trabalho infantil, trabalho escravo e desrespeito às minorias são assuntos que estão se tornando recorrentes na mídia internacional sobre o Brasil. Não há dúvidas de que, assim como a barreira ambiental, a barreira social, se prosperar, também será superada, pois, a despeito de alguns problemas pontuais nas relações de trabalho, o Brasil dispõe de legislação trabalhista moderna e instituições suficientemente sólidas para gerar um ambiente trabalhista seguro quando comparado aos seus principais concorrentes agrícolas.
O Brasil, além de incrementar sua produção de alimentos, deve contribuir para a coordenação latino-americana, região com papel relevante no fornecimento de alimentos para a humanidade. Para tanto, a prioridade deve ser a construção de reputação (positiva) dos produtos do agro brasileiro, o que somente será possível com a geração de conhecimento e a produção de informações que sustentem as discussões das várias barreiras que serão levantadas contra o Brasil no cenário internacional.
Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas (SIRE)
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