Academia Paulista de Educação se manifesta sobre a digitalização radical em São Paulo
A celeuma sobre a decisão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo de abandonar o Programa Nacional do Livro Didático para alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, a partir do ano que vem, estimula reflexões profundas e deixa importantes lições.
A leitura contribui para o desenvolvimento, no cérebro, de novas conexões neurais e habilidades cognitivas por via de suas narrativas e imagens. A produção e revisão dos livros didáticos é um processo longo, feito por especialistas, que se aprimora a cada ano e edição. A substituição do livro, da versão física pela digital, ainda que preservasse as características que contribuem com estes processos cognitivos e sem uma simplificação que modifique as áreas cerebrais mobilizadas, continuaria a ter muitos desafios. Por isso, mesmo que haja uma profunda transformação digital e grande avanço na incorporação da educação mediada por tecnologia, o livro físico, no apoio à aprendizagem de estudantes ainda em precoce formação, é insubstituível.
Então, a primeira lição é que a substituição de livros didáticos por recursos educacionais digitais não acontece da noite para o dia. A transformação para uma educação digital de qualidade exige reflexão sobre quais competências se pretende desenvolver e as melhores estratégias para atingi-las. A seguir, demanda o preparo de conteúdos interativos relevantes que estimulem processos cognitivos mais avançados do que apenas a agregação de conhecimento, além de um programa eficiente de formação dos educadores.
É preciso que o sistema que apoia a educação digital permita a produção de estatísticas sobre acessos, tempo de conexão e desempenho, e que essas informações sirvam de apoio para gestão da aprendizagem pelos professores e gestores educacionais. Por fim, é essencial garantir condições materiais e de conectividade para que a substituição por recursos digitais não seja um fator de aprofundamento da desigualdade social entre aqueles alunos com acesso à tecnologia e os desprovidos de tais recursos em seu ambiente doméstico e escolar. Já vimos isso ocorrer na pandemia.
A segunda grande lição: políticas educacionais disruptivas, como a adotada pela Secretaria Estadual da Educação, não podem ser adotadas sem um amplo processo de consulta a todos os agentes envolvidos. Aí se incluem os alunos, professores, seus pais e a comunidade que os cerca, além dos muitos educadores respeitados que este Estado congrega. Ainda mais quando se trata de uma rede imensa e complexa, como a de São Paulo, uma das maiores do planeta, que atende 1 milhão e quatrocentos mil estudantes/ano apenas na etapa do 6º ao 9º ano.
As razões apresentadas para a recusa dos livros didáticos do PNLD careceram de pareceres ou estudos feitos por especialistas. A decisão também pareceu açodada e monocrática tendo em vista que até mesmo a equipe técnica e de carreira de órgãos da secretaria soube do fato pelos jornais.
Dito isto, é claro que não se pode demonizar o uso da tecnologia digital no processo educacional. Ela pode ser uma importante ferramenta complementar e/ou facilitadora da aprendizagem. Mas tampouco a sua idolatria deve ser cultivada, como se fosse a bala de prata para o salto de qualidade necessário na educação da juventude de São Paulo. Relatório da Unesco aponta o seu lado positivo, quando utilizada de forma moderada e complementar.
Mas não há expectativa de que sua introdução impacte, automaticamente, melhorando a aprendizagem. O órgão da ONU para a educação cita o exemplo do Peru, onde foram distribuídos mais de um milhão de laptops sem que a aprendizagem de seus alunos tenha sido impactada imediatamente.
São Paulo pretende substituir o livro didático por aulas em powerpoint, uma técnica analógica, ultrapassada, que não combina bem com a proposta digital. Ela foi utilizada por países da OCDE nos primórdios da digitalização de suas aulas, há quinze anos.
Hoje o movimento é contrário, e países que incorporaram totalmente a digitalização estão revendo sua estratégia. É o caso da Suécia. O país suspendeu seu plano de digitalização da educação após despencar no ranking do Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS). Na avaliação do seu Ministério da Educação, o péssimo desempenho decorreu da forma acrítica como foram introduzidos os recursos digitais nas escolas. Suas autoridades educacionais concluíram que a digitalização da sala de aula colocou o país diante “do risco de criar uma geração de analfabetos funcionais”.
A Finlândia, país referência mundial, ocupando sempre as primeiras posições no ranking internacional da Educação, decidiu proibir o uso de smartfone, tablet ou computador na sala de aula, com o argumento de estimular os alunos a usarem o cérebro na resolução dos problemas.
Tendo em vista essas experiências e levando em consideração a tendência mundial de controle do tempo de exposição do jovem à tela, a Secretaria de Educação de São Paulo deveria repensar sua decisão de implantar a digitalização das aulas de forma radical. Recomenda-se a prudência, no mínimo, adotando um projeto híbrido, onde o livro físico e a digitalização se complementam ocupando seus diferentes papéis.
Políticas educacionais bem sucedidas normalmente são implementadas de forma prudente, a partir de projeto-piloto, estudado e pesquisado por especialistas, para analisar seu impacto nos professores, alunos e seus pais. A Suécia, ao fazer esse estudo após implantar de forma radical a digitalização da educação, descobriu, tardiamente, que sua estratégia teve impacto negativo em toda a comunidade escolar.
O Programa Nacional do Livro Didático, por sua vez, é uma política pública bem sucedida e aprimorada em 1996, na gestão de Paulo Renato Souza no MEC, quando os livros, para serem distribuídos nas redes públicas, passaram a ser analisados por uma comissão de especialistas. Esse processo induziu a criação de uma indústria forte, altamente profissionalizada e com autores especializados. O aprimoramento destes livros foi se estabelecendo. Também assegurou o pluralismo e autonomia do professor na escolha do material didático, visto que se trata de um cardápio de opções que permite escolha mais condizente com a realidade da escola.
Ao longo de décadas, o livro didático físico tem sido um dos importantes instrumentos de democratização da educação, assegurando que todos os alunos da rede pública, independentemente das condições materiais de sua família, tenham acesso ao mesmo material didático. Não se pode substituí-lo por outro que aprofunde o fosso da desigualdade entre os alunos.
Cada vez mais o modelo de gestão da educação se baseia na “descentralização coordenada”. Esse foi o modelo vitorioso desenvolvido em São Paulo para o Programa Dinheiro Direto nas Escolas. A decisão paulista de centralizar em suas mãos o conteúdo digital do que deve ser ensinado nas salas de aula vai na contramão. Leva o centro da decisão para fora da sala de aula e da escola e limita o pensamento e a criatividade. Não cremos que essa seja a motivação principal para a mudança da política de uso dos livros físicos, pela Secretaria Estadual da Educação, mas abre a possibilidade do “controle ideológico” sobre o deve ser ensinado aos nossos alunos, impactando a pluralismo de ideias que é fundante para a formação de jovens desta faixa etária.
Por tudo isso, seria desejável a Seduc rever sua posição. Os atrasos educacionais intensificados pela pandemia exigem passos para frente e não, para trás.
A boa política pública educacional é aquela que se baseia em evidências, busca consensos e gera coesão por meio de uma ideia-força capaz de empolgar seus protagonistas. Convenhamos, este não é o caso da digitalização radical proposta em São Paulo.
Academia Paulista de Educação
Nenhum comentário:
Postar um comentário