Entregadores e motoristas que exercem a função por aplicativos recebem menos do que aqueles trabalhadores ‘não plataformizados’, o que os obriga a trabalhar mais e de forma precarizada
Brasília (DF) - A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), investigou, no 4º trimestre de 2022, a relação de trabalho por meio das plataformas digitais. Os dados revelaram a precarização do trabalho dos profissionais chamados de ‘plataformizados’, e o controle exercido pelas empresas dos setores de transporte e entrega de mercadorias sobre eles. O estudo também comparou a remuneração e a jornada de trabalho com profissionais dos mesmos segmentos econômicos, mas que desempenham sua atividade sem o intermédio das plataformas, chamados no estudo de ‘não plataformizados’.
A inserção na PNAD do módulo específico sobre trabalho em plataformas e teletrabalho é fruto da cooperação entre o IBGE, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Para a procuradora Clarissa Ribeiro Schinestsck, o ineditismo da pesquisa representa um importante passo para subsidiar o debate envolvendo o trabalho em plataformas digitais. “A pesquisa contribui sobremaneira para fomentar o debate público em torno da regulação do trabalho em plataformas digitais, inclusive do ponto de vista previdenciário, o que só é possível através de dados oficiais. Além disso, as estatísticas abrem a possibilidade para a criação de políticas públicas efetivas e para o planejamento da atuação dos órgãos de defesa do trabalho decente, ao mesmo tempo que demonstram claramente a informalidade nesse tipo de trabalho, a forte dependência dos trabalhadores em relação às plataformas, jornadas mais elevadas e rendimento menor do que os trabalhadores ‘não plataformizados’ do setor privado", aponta.
O diretor de pesquisas da PNAD Contínua do IBGE, Cimar Azeredo, ressaltou a importância da parceria interinstitucional. “Considero fundamental a parceria do IBGE com o MPT e a UNICAMP, que proporcionou a inclusão do módulo de trabalho realizado por meio de plataformas digitais, inserido na PNAD Contínua no final do ano passado. Os resultados revelam uma categoria de trabalhadores com larga dependência das plataformas, trazendo à tona uma forma de inserção para além do trabalho por conta própria, desvendando ainda um mundo do trabalho majoritariamente informal. As estatísticas produzidas com base nesse módulo cumprem o objetivo de fornecer informações baseadas em evidências para elaboração de leis e para implementação de políticas públicas, melhorando a vida de milhões de trabalhadores”, afirma.
Resultados - Segundo a pesquisa, os trabalhadores vinculados aos aplicativos que exerceram a atividade de transporte de passageiro receberam, em média, R$ 11,80 por hora trabalhada, enquanto os mesmos profissionais ‘não plataformizados’ receberam R$ 13,60 por hora, representando uma diferença de 15,25%. A pesquisa também revelou diferença de 7 horas semanais na jornada de trabalho, sendo a média de 47,9 para os ‘plataformizados’ e 40,9 horas para os demais.
Os indicadores são ainda mais preocupantes quando se é analisado o trabalho dos entregadores de mercadorias e delivery. Os ‘plataformizados’ receberam uma remuneração média de R$ 8,70 por hora trabalhada, enquanto os ‘não plataformizados’ receberam R$ 11,90, uma diferença de 36,78%. Assim como os motoristas, a jornada de trabalho também é superior. Enquanto o primeiro grupo trabalhou, em média, 47,6 horas por semana, o segundo atuou em 42,8 horas.
Para o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, a pesquisa da PNAD Contínua demonstra, a partir de um levantamento estatístico nacional, a precarização do trabalho em plataformas digitais, um tema que vem sendo abordado pelo MPT em atuações judiciais e extrajudiciais, com a finalidade de garantir os direitos trabalhistas desses profissionais.
“Ninguém quer impedir o avanço tecnológico, nem as novas firmas de contratação via aplicativo, mas isso precisa ser feito respeitando o patamar mínimo civilizatório conquistado ao longo de muitos anos de luta da classe trabalhadora. Entregadores e motoristas que não trabalham via aplicativo trabalham menos e recebem mais, além de representarem quase o dobro do total dos trabalhadores por aplicativo que contribuem com a Previdência. Ou seja, estamos criando uma subcategoria, com subempregos, sob uma falsa premissa de modernização. Esses trabalhadores precisam ser respeitados e terem seus direitos assegurados”.
Controle - A pesquisa também revelou o controle exercido pelas plataformas digitais em relação aos trabalhadores, analisando o nível de dependência quanto à definição dos valores para realizar as tarefas; os clientes a serem atendidos; o prazo para realização da atividade; a forma de recebimento do pagamento e a jornada de trabalho.
O transporte por passageiro alcançou 97,3% de dependência em relação ao estabelecimento do preço pela corrida, enquanto os entregadores são 84,3% dependentes das plataformas nesse quesito. Ambos também apresentaram taxa semelhante em relação aos clientes. 87,2% dos clientes são determinados pelas plataformas no caso dos motoristas e 85,3% no caso dos entregadores.
Jornada de trabalho - A influência dos aplicativos para determinar a jornada de trabalho foi outro item do levantamento que merece destaque. 63,2% dos entrevistados afirmam que os dias, horários e duração do trabalho são influenciados pelos bônus e incentivos oferecidos pelas plataformas e 42,3% pela possibilidade de punição e bloqueios. Mesmo apontando que as plataformas ditam as regras para determinar a jornada de trabalho, 83,8% dos motoristas disseram à pesquisa que possuem possibilidade de escolha de dias e horários de forma independente.
Em relação aos aplicativos de entrega, 54,5% afirmaram que são influenciados pelos bônus e incentivos que mudam os preços e 32,8% pelas ameaças de punições e bloqueios realizados pelas plataformas. 70,8% acreditam que possuem liberdade de escolha de dias e horários.
Para o procurador-geral do Trabalho, os dados objetivos deixam claro a forte dependência e controle das plataformas, e revelam igualmente a percepção dos trabalhadores no sentido de possuírem uma suposta liberdade de escolha e flexibilidade de jornada. Segundo ele, é uma falsa ideia de liberdade e flexibilidade, já que estes mesmos trabalhadores são obrigados a cumprir jornadas de trabalho conforme determinado pelas plataformas, sob pena de menores recebimentos ou punições por recusas.
“Olhando com atenção particular o trabalho em plataformas, essa pesquisa poderá nos dizer o que de fato é esse trabalho, e não aquilo que as empresas vendem como o paraíso da autonomia, do empreendedorismo e elementos desse tipo que contraditam com a dura realidade onde sofrimento, morte, adoecimento, péssima alimentação e ausência de direitos é o que caracteriza a sua atividade”, afirma o docente da UNICAMP e sociólogo Ricardo Antunes.
Contribuição previdenciária -Segundo a pesquisa, 60,8% das pessoas ocupadas no setor privado contribuem para a previdência no Brasil. Entretanto, quando a amostra é feita em relação aos motoristas e entregadores, esse número despenca. Os motoristas ‘não plataformizados’ que contribuem para a previdência representam 43,9%, enquanto os entregadores somam 39,8%. E se o índice já é bastante inferior às demais profissões, o número é ainda menor quando o olhar se direciona aos trabalhadores que prestam serviços por aplicativos. Apenas 23,6% dos motoristas profissionais ‘plataformizados’ contribuem para a previdência e somente 22,3% entregadores o fazem.
Dados gerais -A pesquisa também revelou o perfil sociodemográfico dos trabalhadores. No total 1,49 milhão de pessoas trabalharam por meio de aplicativos de serviço. 61,3% dos profissionais possuíam ensino médio completo ou superior incompleto sendo que 47,2% eram trabalhadores de transporte particular de passageiro; 39,5% de aplicativo de entrega de comida ou produtos, 13,9% de aplicativos de táxi e 13,2% de aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais [1].
Em relação à ocupação, 77,1% afirmaram que trabalhavam por conta própria, 6,6% eram compostos pelos empregadores e 15,2% por pessoas com outros empregos no setor privado, em sua maioria que não possuíam carteira assinada (9,3%).
Teletrabalho –No Brasil, cerca de 9,5 milhões de pessoas realizaram o trabalho remoto no período de referência de 30 dias da pesquisa. A pesquisa traz dados relevantes para entender a modalidade, potencializada no mundo pós-pandemia.
Desse total de trabalhadores, 69,1% possuem ensino superior completo e 39,6% são empregados do setor privado com carteira de trabalho assinada. Além disso, os principais segmentos de atuação na modalidade telepresencial são os da informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas, que representam 40,6% do total.
“De todos os teletrabalhadores, quase 70% tinham nível superior. A proporção também era muito maior entre os profissionais das ciências e intelectuais, grupo que inclui, por exemplo, engenheiros, advogados, economistas, professores e diversos profissionais da área de TI, e entre as pessoas em cargos gerenciais e de direção. Esses tipos de ocupação tendem a ser mais favoráveis ao teletrabalho”, explica o analista da pesquisa, Gustavo Fontes.
Outro dado que chama a atenção é a distribuição de pessoas, segundo a cor ou raça e a idade. As pessoas de cor branca representam 63,3%, enquanto as pretas alcançam 7,7% e as pardas 27,1%. No grupo de idades, 49,6% estão na faixa de 25 a 39 anos, e outros 35,4% na faixa de 40 a 59 anos. As pessoas com 60 anos ou mais somam 6%.
[1] A soma dos valores ultrapassa 100% porque há profissionais habilitados em mais de um aplicativo. Por exemplo: motoristas de táxi que também trabalham no transporte particular.
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