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Fumaça do lixão prejudica população de São Fernando (Foto: Marcílio de Araújo/G1) |
No admirável livro "A Cidade na História", o perspicaz geógrafo Lewis Mumford assinalou que uma das questões mais espinhosas das civilizações reside na forma como lidam com seus dejetos. Antes que o sabão e a água tratada se imiscuíssem na rotina humana, era comum que os homens e mulheres exalassem o último suspiro por volta dos quarenta anos, vítimas de doenças estomacais que, longe de serem castigo divino, eram meros tributos pagos à insalubridade cotidiana.
Tenho visto, nestes últimos dias, inúmeras cenas do famigerado carnaval de Caicó, aqui no monturo do terceiro mundo. Há um quê de singularidade nesse espetáculo em que a multidão dança sobre o próprio lixo que descarta, sem se dar ao trabalho de perceber que pisa nos vestígios da própria incivilidade. Curiosa contradição, sobretudo quando se sabe que tal festividade — esse verdadeiro festival do subdesenvolvimento — é regado a generosos milhões extraídos dos cofres públicos. São três milhões de reais retirados dos pobres e lançados ao vento, como confetes, apenas para que os ricos da cidade vejam seus cofres engrossarem, enquanto o poder público permanece alheio à degradação que ele mesmo financia. Senão, vejamos:
A coleta de lixo, esse exercício de civilidade, ocorre apenas uma vez por semana, insuficiência que não espanta, mas entristece.
Há anos, Caicó presenteia sua irmãzinha São Fernando com a fumaça tóxica do seu lixão, numa generosidade que só rivaliza com a indiferença.
Os rios, esses velhos narradores da cidade, há tempos perderam a voz para a poluição.
No passado, quiçá por deliberação da ignorância, construiu-se balneários dentro do açude que então fornecia água à população — erro cuja estupidez não envelheceu um só dia.
Com a modernidade industrial e o advento do plástico e das embalagens descartáveis, o lixo, esse espectro da civilização, ganhou proporções dantescas. O Brasil, sempre fiel a seus hábitos, continua repleto de lixões. E o povo, criatura afeiçoada ao hábito, joga lixo ao chão, entulha terrenos baldios e, não satisfeito, incendeia os próprios dejetos nos quintais, como se purificassem seus pecados na chama das sobras.
O que temos aqui, meus caros, é uma curiosa simbiose do subdesenvolvimento, sintetizada no lixo: o lixo da música contratada, o lixo que adorna as ruas, a coleta que mal se dá ao trabalho de existir, o lixão que, teimoso, persiste como um monumento à negligência. Assim segue a cidade, embalando-se ao som dos excessos, dançando sobre sua própria decadência.
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