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sábado, 26 de abril de 2014

Estados Unidos: Os abusos dos bancos no setor imobiliário e as ações de despejo ilegais

Por - Eric Toussaint

Parte 1
Durante os anos 2010-2013, as autoridades dos Estados Unidos chegaram a acordo com os bancos para evitar que estes fossem condenados pela justiça no âmbito do escândalo das hipotecas e das ações ilegais de despejo[i]. Para tal, bastou que os bancos pagassem uma simples multa. Desde o início da crise, em 2006-2007, mais de 14 milhões de famílias foram despejadas de suas casas. Pelo menos 500.000 foram ilegalmente despejadas. Muitas vítimas foram apoiadas pelos movimentos sociais, nomeadamente pelo Strike Debt[ii], que reagiram organizando-se para enfrentarem os oficiais de justiça e recusarem os despejos. Milhares de queixas foram apresentadas contra os bancos.
Uma das acusações feita contra os bancos baseia-se na incapacidade de fornecerem documentação que justifique o despejo de proprietários com prestações de empréstimos em atraso. A inexistência de documentação e o grande volume de créditos desse tipo, concedidos no período antes da crise, têm levado os bancos a contratarem pessoal para assinar diariamente dezenas, mesmo centenas, de documentos, aprovando os despejos sem respeitarem os procedimentos legais (é o designado robot signing ou «assinatura robot»)[iii]. Os bancos levaram a cabo despejos sem justificação econômica ou legal em cerca de 500.000 casos (o número final pode aumentar significativamente, porque inclui os resultados de todas as investigações e denúncias realizadas). Apesar dos graves danos causados por práticas bancárias fraudulentas, a multa corresponde, nalguns casos, ao pagamento de um montante inferior a 300 dólares por família afetada[iv], e, noutros casos, atinge entre 1500 e 2000 dólares. Outras acusações feitas contra os bancos dizem respeito à venda de produtos estruturados compostos de créditos hipotecários tóxicos (mortgage backed securities), vendidos, nomeadamente, às empresas públicas de habitação (Freddie Mac e Fannie Mae).
Regresso às políticas que conduziram à crise do subprime
A administração de George W. Bush tinha feito da «sociedade de proprietários» um tema central do seu discurso político: «Estamos a criar uma sociedade de proprietários no nosso país, na qual cada vez mais americanos terão a oportunidade de abrir a porta de sua casa e dizer: “Bem-vindo à minha casa”, “Bem-vindo ao que eu possuo”»[v].
Alan Greenspan confirma, nas suas memórias, logo após o início da crise, em 2007, que havia uma estratégia política na base da atitude adotada pela Reserva Federal de apoio à política de Bush: «Eu estava bem consciente de que o abrandamento do crédito hipotecário aumentava o risco financeiro e que as ajudas à habitação exerciam um efeito distorsivo no mercado. Mas eu considerava também que o aumento do número de proprietários reforçava o apoio ao capitalismo de mercado – vasta questão. Eu achava, e ainda o acho, que os benefícios do alargamento da propriedade imobiliária individual compensavam bem o inevitável crescimento dos riscos. A proteção dos direitos de propriedade, tão essencial a uma economia de mercado, necessita da massa crítica dos proprietários para ganhar apoio político»[vi].
É também necessário mencionar, como veremos nos capítulos seguintes, que as administrações de Bill Clinton e George W. Bush tinham apoiado sistematicamente os principais bancos na sua vontade de se livrarem definitivamente das restrições que pesavam sobre eles, herdadas das medidas de disciplina bancária impostas por Roosevelt nos anos trinta[vii].
O detonador da crise foi a bolha especulativa que antes de rebentar tinha inflacionado o preço do imobiliário[viii] e levado a um aumento desproporcionado do setor da construção em relação à procura efetiva. O número de novas casas disponíveis por ano aumentou de 1,5 milhões em 2000 para 2,3 milhões em janeiro de 2006. Uma proporção crescente de novas habitações deixou de encontrar compradores, apesar das facilidades de crédito concedidas às famílias pelos bancos e do estímulo das autoridades norte-americanas.
Essa superprodução acabou por provocar uma queda brutal do preço do imobiliário. As previsões relativas às famílias que tinham adquirido hipotecas subprime[ix] foram afetadas por essa mudança de circunstâncias. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a possibilidade e o costume, quando os preços do imobiliário estão em alta, de renegociar após dois ou três anos, com base numa hipoteca que valorizou o seu contrato de empréstimo inicial, a fim de obterem condições mais favoráveis, taxas mais vantajosas. Note-se que no setor dos empréstimos subprime, a taxa dos dois ou três primeiros anos era fraca e fixa, à volta de 3%, enquanto que no terceiro ou quarto ano, não apenas a taxa aumentava de forma consequente (passando a 8 ou 10%), como se tornava também variável e podia, em muitos casos, atingir facilmente 14 ou 15%.
A partir de 2006, quando os preços do imobiliário começaram a cair, as famílias que tinham recorrido aos empréstimos subprime nunca mais foram capazes de renegociar favoravelmente a sua hipoteca a fim de melhorarem as condições.

Como afirma Paul Jorion em A Crise do Capitalismo Americano, os créditos no setor subprime visavam «na realidade aliviar as economias dos infelizes que tentavam aceder ao “sonho” sem na realidade possuírem os meios financeiros para lá chegarem, estando na primeira linha a população negra e da América Latina. As combinações são numerosas, incluem desde contratos com condições escritas diferentes das acordadas verbalmente, até ofertas que visam simplesmente encurralar o candidato na falência e, em seguida, beneficiar da penhora da casa, passando pelos refinanciamentos apresentados como sendo “vantajosos”, mas com condições na realidade calamitosas»[x]

Desde o início de 2007, o não pagamento de empréstimos começou a alastrar. Entre janeiro e agosto de 2007, 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos abriram falência. As empresas e famílias ricas que especulavam, na fase alta, no mercado imobiliário e obtinham lucros copiosos, retiraram-se abruptamente, acelerando assim a queda dos preços. Os bancos que tinham colocado os créditos hipotecários em produtos estruturados e os vendiam em massa (nomeadamente grandes bancos europeus ávidos de rendimento) estiveram no centro da crise.
Assim, o edifício gigantesco das dívidas privadas começou a ruir com o estouro da bolha especulativa do setor imobiliário norte-americano e foi seguido por outras crises do imobiliário na Irlanda, no Reino Unido, em Espanha, em Chipre, em vários países da Europa Central e de Leste e, desde 2011-2012, na Holanda...
Vale a pena mencionar que Nicolas Sarkozy[xi], seguindo os passos de George W. Bush, convidou os franceses a endividarem-se ainda mais. Na edição de abril de 2007 da Revue Banque Sarkozy escrevia: «As famílias francesas são hoje as menos endividadas da Europa. Ora, uma economia que não se endivida suficientemente é uma economia que não acredita no futuro, que duvida dos seus ativos, que teme o amanhã. É por essa razão que eu pretendia desenvolver o crédito hipotecário destinado às famílias e que o Estado interviesse para garantir o acesso ao crédito a pessoas doentes. (...) Se o recurso à hipoteca fosse mais fácil, os bancos focalizavam-se menos na capacidade pessoal de pagamento do devedor e mais no valor do bem hipotecado.»
Pode-se imaginar o que teria acontecido se a crise do subprime não tivesse ocorrido em 2007-2008, e se, de repente, Nicolas Sarkozy continuasse a promover o modelo aplicado nos Estados Unidos...
Entre 2010 e 2013, os grandes bancos dos Estados Unidos pagaram 86 bilhões de dólares para evitarem condenações
Entre 2010 e finais de 2013, apenas no caso dos créditos hipotecários, ocorreram 26 transações envolvendo várias autoridades dos Estados Unidos e os principais bancos do país[xii].
Todos os grandes bancos dos Estados Unidos estão envolvidos: JPMorgan, Bank of America, Citigroup, Wells Fargo, Goldman Sachs e Morgan Stanley. No total, desde 2008, aceitaram pagar cerca de 86 bilhões de dólares para escaparem a condenações em matéria de crédito hipotecário[xiii]. O Bank of America aceitou pagar multas, no total, de aproximadamente 44 bilhões de dólares, o JPMorgan 26,4 bilhões de dólares, o Well Fargo 9,5 bilhões de dólares, o Citigroup 4,7 bilhões de dólares, o Goldman Sachs um pouco menos de 1 bilhão de dólares e o Morgan Stanley 330 milhões de dólares. Deve ainda acrescentar-se os honorários pagos a advogados e outras despesas. Para ter um termo de comparação, apenas em 2012, o lucro líquido de seis bancos envolvidos totalizou 59,5 bilhões de dólares (após o pagamento das multas desse ano, claro). Saíram-se melhor em 2013. Após um desfalque nos seus lucros de 18 bilhões dólares para fazer face às multas desse ano, os lucros líquidos subiram 21% em 2013, atingindo 74 bilhões dólares[xiv]. Se esses seis bancos não tivessem de pagar multas, os lucros teriam ultrapassado o recorde histórico atingido em 2006 em plena bolha imobiliária! Isso mostra que essas multas apresentadas publicamente como excepcionalmente pesadas não impedem os banqueiros de brindarem com champanhe enquanto milhões de famílias são vítimas dos seus abusos.
Apesar das provas de fraude e dos abusos cometidos pelo bancos, apesar de milhões de vítimas nas classes populares, nenhuma acusação criminal foi deduzida contra os bancos, nem ninguém foi preso. Os acordos celebrados entre as autoridades e os bancos isentam estes últimos da responsabilidade de responderem financeiramente ou legalmente a acusações semelhantes às que foram deduzidas durante o período anterior[xv]. Cúmulo da ignomínia, ou como dizem os ingleses, «para juntar o insulto à injúria», Jamie Dimon, o patrão do JPMorgan, viu em 2013 o seu salário aumentar 74%, atingindo os 20 milhões dólares[xvi].

Tradução: Maria da Liberdade
Revisão: Rui Viana Pereira

Esquerda.net

Eric Toussaint
Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo

[i] Ver a primeira parte da série: «Os bancos e a doutrina «demasiado grandes para serem condenados”», 9 Março 2014, http://cadtm.org/Os-bancos-e-a-nova...
[ii] Strike Debt, «United States: The Debt Resisters’ Operations Manual», 25 Março 2014,http://cadtm.org/The-Debt-Resisters...
[iii] Democracy Now, «As Wells Fargo is Accused of Fabricating Foreclosure Papers, Will Banks Keep Escaping Prosecution?», 22 Março 2014, http://cadtm.org/As-Wells-Fargo-is-...
[iv] Tyler Durden, «The Banks penalty to put robosigning behind them: 300 dollars per person», 9 Abril 2013, http://www.zerohedge.com/news/2013-...
[v] George W. Bush, 2 Outubro 2004, «Remarks at the National Association of Home Builders», Columbus, Ohio. Citado por Gaël Giraud (2013), p. 21.
[vi] Alan Greenspan, L’Age des Turbulences, Paris, JC Lattès, 2007, p. 304.
[vii] Ver Eric Toussaint, «Comment les banques et les gouvernants détruisent les garde-fous», 13 Janeiro 2014, http://cadtm.org/Comment-les-banque...
[viii] Entre 2001 e 2007, o preço do imobiliário aumentou 100 % nos Estados Unidos.
[ix] Subprime designa empréstimos hipotecários mais arriscados para o credor (mas com melhor rendimento) do que a categoria prime, especialmente por designar um certo tipo de crédito hipotecário.
[x] Paul Jorion, «Inédit: les 3 premières pages de «la crise du capitalisme américain» (2007), publicado a 23 Fevereiro 2012, http://www.pauljorion.com/blog/?p=34264
[xi] Nicolas Sarkozy, político de direita, presidiu à República francesa de 2007 a 2012.
[xii] SNL, «Timeline Credit crisis and mortgage-related settlements»http://www.ababj.com/images/Dev_SNL... consultado a 22 fevereiro 2014.
[xiii] SNL, «Credit crisis and mortgage-related settlements for select bank holding companies»http://www.ababj.com/images/Dev_SNL... consultado a 22 fevereiro 2014.
[xiv] Bloomberg, «Big Six U.S. Banks’ 2013 Profit Thwarted by Legal Costs», 9 Janeiro 2014,http://www.bloomberg.com/news/2014-... Ver também Thinkprogress, «Profits At The Biggest Banks Bounce Back To Post-Crisis Record High», 21 janeiro 2014,http://thinkprogress.org/economy/20...
[xv] Entre as vozes críticas, ler Huffingtonpost, «The Top 12 Reasons Why You Should Hate the Mortgage Settlement», 2 setembro 2012, http://www.huffingtonpost.com/yves-...
[xvi] Financial Times, «Dimon’s pay soars 74 % to $20m», 25-26 Janeiro 2014.

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