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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

DUAS FARSAS NOS PUSERAM ENTRE A TRAGÉDIA E O DRAMA

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Carlos Novaes, 23 de setembro de 2018

Em 1988, depois de uma intensa luta, de cujos enganos já tratei em texto e vídeo, foi promulgada essa Constituição que muitos supunham nos garantir um Estado democrático de direito.
No rastro dessa esperança, em 1989 a maioria da sociedade viveu a alegria de votar para escolher o presidente da República, imaginando que estava a tornar coisa do passado a ditadura paisano-militar — começava ali a produção de uma farsa parcialmente lastreada nas expressões mais visíveis do que havíamos alcançado de melhor na nova dinâmica política: o PSDB e o PT. Em movimentação que parecia paralela, mas que iria se mostrar convergente, já no ano seguinte, na eleição de 1990 para o Congresso, os votos de uma minoria ressentida elegeram Jair Bolsonaro deputado federal — começava ali a produção de uma farsa inteiramente gerada nas dobras mais profundas do que havíamos conservado de pior da velha cultura política: os dispositivos militar e paisano da ditadura.
Entre 1988 e 2018 temos os trinta anos em que criamos as condições para que essas farsas — contorcendo-se como duas serpentes entre oportunidades oferecidas pela rotina eleitoral a que a imensa maioria de nós se abandonou — ganhassem força, se entrelaçassem e acabassem por se colocar cara a cara, prestes a nos engolfar num espetáculo inédito: a dança macabra entre duas farsas vai produzir ou um drama, ou uma tragédia.
A primeira farsa consistiu numa polarização fajuta, PSDBxPT, que arregimentou e nutriu forças que deveriam ter sido vencidas (p-MDB e ARENA/PDS/PFL/DEM), trazendo o país a uma situação pior do que a existente nos dias do golpe de 1964 contra a democracia; a segunda farsa vem costurando a mortalha da democracia que parecia recuperada retorcendo os fios da história deixados pelos primeiros farsantes, que renunciaram ao trabalho de levar a luta contra o legado de 1964 até o fim; o drama será o aprofundamento da crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário em que a primeira farsa fez seu ninho manipulando a palha frágil da democracia eleitoral; a tragédia será o retorno do país, via democracia eleitoral, à situação brutal em que a desigualdade é incrementada com o arbítrio, que sufoca até a liberdade de nos dizermos contra ela.
Onde está o nó de amarração dessa disjuntiva amarga?
A DESORIENTADORA CENTRALIDADE DA DESIGUALDADE
A desigualdade é a chave para entendermos esses trinta anos, pois foi em torno dela que mobilizaram o engano, o erro e a mentira contra o potencial transformador da verdade. A verdade é que o Brasil tem uma desigualdade cruel, sem paralelo no mundo, que condena ao sofrimento a maioria da sociedade; o engano está em supor que o fundamental nessa desigualdade seja o fato (indiscutível) de os interesses dos muito ricos provocarem o sofrimento extremo dos muito pobres; o erro, saído desse engano, foi rebaixar a luta contra a “desigualdade” à busca da compaixão daqueles que foram levados a supor que não sofrem com a desigualdade; a mentira está em difundir que essa “desigualdade” tem sido combatida com esses programas sociais que agradam aos pobres, são tolerados pelos ricos e vividos como perda pelas camadas médias.
Os sabichões da nossa autointitulada esquerda contribuíram decisivamente para esse estado de coisas. Vejamos como eles têm interpretado os números e os gráficos com que pretendem ilustrar a nossa desigualdade. É sempre a mesma ladainha, com três invocações básicas:
  1. Mostram os grandes contrastes de renda e riqueza entre, de um lado, os muito ricos (variando entre os 1%, os 5% e os 10% mais ricos) e, de outro lado, a imensa maioria mais pobre (geralmente os 50% mais pobres);
  2. Comparam a situação com outros países, falando da injustiça de uma situação assim única no mundo;
  3. Pretendem levar a plateia a achar que a solução é tirar dos ricos para distribuir aos pobres, não sem ressaltar que não se trata de caridade, embora toda a argumentação tenha por base despertar a adesão inerte dos pobres e a compaixão/solidariedade das camadas médias.
Toda essa arenga deixa de fora o essencial: os 49%, 45% ou 40% que não estão em nenhum dos dois blocos polarizados acima: as camadas médias. Por que isso é essencial?
  1. Desde logo porque se trata de quase metade da população;
  2. Como a desigualdade é brutal, ela distribui sofrimentos palpáveis por todas as camadas da pirâmide social que estão abaixo dos ricos. As camadas médias sofrem a desigualdade na má qualidade da vida que levam, um sofrimento desnecessário quando se considera o que o país poderia oferecer: vias de transporte precárias, saúde e educação ruins (quando públicas) ou caras (quando privadas), transportes coletivos caros e sucateados (trens e ônibus) ou caros e aquém da demanda (metrô), violência crescente, segurança cara e inconfiável (quando privada) ou ruim e arbitrária (quando pública);
  3. Não há como sair disso pela reparação aos mais pobres, porque reparação não move as estruturas pesadas que têm de ser transformadas. Focar nos mais pobres excluindo as camadas médias permite proteger os ricos, pois o que tem sido distribuído aos mais pobres é pouco, embora os contente, e pesa muito, por via direta e indireta, nas costas das camadas médias.
Foi uma arranjo bom para cativar eleitores, mas péssimo para o país: cativou eleitores porque os pobres ficaram gratos e parte das camadas médias não protestou porque aderiu ao chamado à compaixão e/ou preservou seus privilégios corporativos no serviço público; foi péssimo para o país porque armou esse desastre que é a ressaca decorrente da união da frustração dos pobres com a raiva aberta dos segmentos de classe média que nunca aderiram à compaixão e estavam contidos em sua contrariedade.
Veja bem, leitor: a raiva que hoje vemos nessa classe média contrariada foi nutrida por dois pratos indigestos: primeiro, ela foi levada ao caminho mais fácil de acreditar que seus sofrimentos devem-se ao que foi dado aos pobres; segundo, e mais importante, depois de ser confrontada por anos com o discurso hegemônico da compaixão, um discurso que a incomodava também por explicitar o conflito entre a sua mesquinhez real e os seus alegados valores cristãos, deixando-a em desconforto moral consigo mesma, essa classe média recebeu como um bálsamo legitimador do pior de si a descoberta de que os pregadores da compaixão pelos pobres, que tanto a espezinhavam, tinham feito da corrupção um meio de enriquecimento pessoal, pelo qual traíam a boa fé dos pobres a quem cativavam às custas dela!
Essa é, em última instância, a explicação para o fato de nesta eleição a sociedade estar improdutivamente polarizada entre as suas duas urgências fundamentais: a urgência social e a urgência por ordem.
RESÍDUOS NEFASTOS DESSE MALOGRO HISTÓRICO
O que resta da primeira farsa, protagonizada por PT e PSDB, são, enquanto candidaturas que importam, Haddad e Alckmin. A segunda farsa emerge com a força de Bolsonaro, que se fez vetor dessa ampla revolta cujas bases tentei apresentar acima. Haddad e Alckmin resistem porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não encontrou saída transformadora; Bolsonaro emerge precisamente porque, não havendo alternativa transformadora, a volta ao passado, para antes dos 30 anos da farsa, aparece para os mais conservadores como a saída mais viável — daí a mistificação sobre a ditadura ter sido uma época de progresso e segurança.
Ambas as farsas compartilham o fundamental, ainda que divirjam no método:
  • Compartilham o empenho em mostrar credenciais de governança aos ricos (simbolizados no tal Mercado), deixando claro que continuarão a servi-los, sem mexer na desigualdade;
  • Divergem na forma de fazer o exercício faccioso dos poderes institucionais:  os primeiros pretendem, sem saber bem como, estender a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, isto é, insistem em manter uma equação que não fecha: desigualdade extrema com democracia eleitoral; o segundo propõe o fim da crise de legitimação pela pura e simples entronização da ilegitimidade, com o fim da democracia.
Alckmin está em situação difícil porque, embora tenha a confiança do Mercado e seja seu preferido, quando se passa às massas eleitorais, incontornáveis numa democracia eleitoral, sua candidatura está espremida entre as duas urgências: perdeu o social para a Haddad e perdeu a ordem para Bolsonaro.
Alckmin perdeu o social para Haddad em razão do fator Lula, sobre o qual já falei bastante nesse blog — em resumo: entre os pobres, Lula se beneficia de ressentimentos e esperanças cativas, obtidos com o logro do assistencialismo e a manipulação de um inegável laço simbólico, que ele traiu; nas camadas médias, quando não é visto como o caminho para se dar bem, Lula oferece apoio ao escapismo ideológico de quem não quer encarar a própria derrota, que está patente, entre outras coisas, nesse êxito de Lula entre os pobres.
Alckmin perdeu a ordem para Bolsonaro precisamente porque o divórcio entre o social e a ordem, que o PSDB ajudou a promover junto com o PT, abriu a brecha para que o ex-capitão explicitasse, tornasse motivação de massa, aquilo que Alckmin já fazia, farsescamente, na encolha: o uso arbitrário da força contra os pobres, feito espetáculo diário em programas de televisão — Alckmin providenciou os pregos e o martelo com que estão a pregar a tampa do seu caixão. Tanto é assim que Bolsonaro está muito na frente de Alckmin no Estado de São Paulo. Boa parte disso se explica pela transformação em força eleitoral do que havia de simpatia entre os paulistas pelos métodos do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM.
Além de estar em lugar de destaque nas principais campanhas para governador e ter vários candidatos fortes para o Legislativo, a PM paulista aderiu, em peso, à candidatura de Bolsonaro, numa ação concatenada que mostra a existência de um projeto de militarização da política que sempre esteve além de um Alckmin — viram no ex-capitão uma oportunidade de deixar para trás o “legalismo” dosado dos tucanos, que vinham tendo que tolerar.
Os ricos pensam que Bolsonaro poderá organizar a Casa Grande e pôr ordem na senzala (a essa altura, vão ter de matar bem mais de 30 mil…); as camadas médias em que a raiva tomou o lugar dos dilemas da compaixão, e os pobres nos quais o ressentimento é maior do que a esperança, têm em Bolsonaro o portador de uma vingança (cada um supõe saber de quem está a se vingar e rói lá no íntimo o pão sovado da vingança) — esse processo, que é irracional, acaba por fazer a convergência eleitoral entre segmentos de perdedores que, não obstante partilhem a condição de perdedor, se odeiam, ódio recíproco que, por sua vez, é um equívoco, pois ambos são vítimas dos ricos aos quais se uniram em busca de uma ordem que acabará por garantir a permanência do pior dostatus quo que os infelicita!
A ALTERNATIVA
A desigualdade brasileira é de tal magnitude, ela amarra o país de tal forma ao atraso, que ela é sim um jogo de soma zero: o país só pode ganhar se os ricos perderem, ainda que o que iremos ganhar não se resuma ao que os ricos perderão, pois a perda deles é apenas parte do esforço para desatar forças produtoras de riqueza social.
Temos que tirar dos ricos, deixá-los menos ricos, não exatamente para distribuir aos pobres, mas principalmente para alterar estruturas e incrementar as condições que permitam tirar o país do atraso e, assim, mais adiante, alavancar milhões do fundo da pobreza.
Não há bala de prata distributiva contra a desigualdade. São mudanças tributárias, previdenciárias, salariais e em serviços sociais. Por um lado, temos de redistribuir o ônus da obtenção da receita pública, cobrando mais de quem tem mais, mas cobrando, sim, de quem tem menos; por outro, melhorar a qualidade do gasto público, redefinindo prioridades de modo a que os 40% que não são ricos sem serem pobres também constatem que haverá melhora para si.
O ônus da obtenção da receita se redistribui via reforma tributária, menos para aliviar os pobres ou as camadas médias, e mais para agravar os ricos. Do lado do gasto, fazer uma reforma da previdência partindo de que todos os diretamente implicados perderão alguma coisa, sendo que alguns perderão mais do que outros, sempre em benefício do bem comum no futuro. Esse bem comum deveria aparecer na forma de projetos claros de incremento do gasto público em Educação, Saúde, Segurança e Infraestrutura. Seria necessário propor um projeto que abarcasse com detalhes todas essas variáveis ao mesmo tempo, de modo a que os números das perdas e dos ganhos ficassem claros para todos os interessados, mostrando, na linha do tempo, para onde irão as receitas saídas da tributação dos mais ricos e economizadas com as concessões inescapáveis que todos teremos de fazer na Previdência.
Só que não. Os políticos profissionais preferiram o atalho do engano, do erro e da mentira. Separaram as urgências, quando a saída exige juntá-las. Se as tivéssemos juntado, os ricos teriam ficado isolados, e as camadas médias, ainda que com defecções importantes, claro, poderiam se unir aos pobres para fazer maioria social pela transformação, uma transformação cujos rumos seriam (e serão, um dia) disputados entre idas e vindas de maiorias eleitorais que a ninguém é dado prever.
No momento, a sociedade brasileira vê o Brasil em crise sem enxergar que ele está como uma caravela montada dentro de uma garrafa: o gargalo oferecido por esta eleição é estreito demais para que a caravela possa enfunar velas e ganhar alto-mar — há que quebrar a garrafa, mas sem arrebentar o barco.

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