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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A concessão de HC de ofício conforme a Teoria dos Jogos



Por Mariana Madera Nunes

A formalização de Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal resvala em entraves processuais que vão desde o entendimento consolidado na Súmula 691/STF (que impede a formalização de HC em face de decisão denegatória de liminar) até a impossibilidade de impetrar o writ em face de ato individual de ministro da Corte, passando ainda pelos óbices à utilização do habeas sucedâneo de agravo regimental na Corte antecedente e em substituição de recurso extraordinário e revisão criminal.

Se, por um lado, as restrições se justificam tendo em vista a falta de exaurimento da jurisdição antecedente, a supressão de instância e a competência originária do Tribunal; de outro, é preciso ter em conta que o Habeas Corpus destina-se à proteção de uma plêiade de direitos, alcançando todo o sistema dos direitos humanos. Segundo a Opinião Consultiva 8 da CIDH, de 30 de janeiro de 1987, que trata da suspensão da garantia judicial do Habeas Corpus, a limitação do HC nos regimes de exceção da América Latina contribuiu para que ocorressem desaparecimentos, torturas e homicídios tolerados pelos governos que instituíam situações emergenciais.

Nesse contexto de busca da conciliação entre os óbices processuais ao cabimento de HC e a concretização da proteção judicial efetiva do direito de locomoção (artigo 5º, XXXV, da CF), havendo prisão atual ou configurada ameaça iminente ao direito de ir e vir, será sempre possível o implemento da ordem de ofício, por expressa disposição legal (artigo 654, § 2º, do CPP e art. 193 do RISTF). “Trata‑se, portanto, de uma possibilidade de automático desempenho da proteção efetiva pelo Judiciário que extrapola, por definição, os rigores formais da noção processual de inércia da jurisdição’.

Aliás, a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), no seu artigo 9º, parágrafo único, inciso III, estipula como fato típico a conduta de quem deixa de deferir liminar ou ordem de Habeas Corpus, dentro do prazo razoável, quando manifestamente cabível — pena: detenção, de 1 a 4 anos, e multa.

A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido do afastamento dos rigores processuais quando presente flagrante constrangimento ilegal ou teratologia, cujos critérios assentados pelo Pleno como requisitos para superação da orientação contida na Súmula 691/STF, no julgamento do HC 95.009/SP (6.11.2008), podem ser adotados nas demais hipóteses de não conhecimento da ação constitucional. Assim, é indispensável estar demonstrada: 1) a premente necessidade de concessão do provimento cautelar; e 2) a caracterização ou manutenção de situação manifestamente contrária ao entendimento do STF.

Somente neste ano de 2020, até o último dia 1º de setembro foram concedidas 509 ordens de HCs, dentre as quais, 185 de ofício. Em 2016, saliente-se, o número de concessões “diretas” e “de ofício” foi o mesmo (213), dando conta da importância de se conhecer os parâmetros adotados pelo Tribunal para chegar-se a tal conclusão.


É fato que os contornos da concessão da ordem de ofício deixam margem para uma perigosa seletividade e discricionariedade, dando ensejo, não raro, a tratamento desigual para os que estejam em idêntica situação jurídica. “Os limites da ‘flagrante ilegalidade’ não restaram consolidados, tornando-se o casuísmo e boa vontade de cada um dos Ministros. Daí o jogo e a maneira como são argumentados ganhar relevância”.

Mas, então, como estabelecer expectativas sobre o comportamento do STF em relação ao deferimento de HC de ofício? É possível alinhar as jogadas processuais penais, traçar o perfil dos julgadores, analisar fatores internos e externos de pressão e antecipar ações decisórias, com vistas à superação do óbice processual e consequente obtenção do resultado favorável (recompensa)? Ressalte-se, antes de tudo, que é preciso “jogar limpo”, servindo o devido processo legal substancial como norte para a escolha das melhores estratégias e táticas dentro das singularidades de um processo específico.

Segundo Alexandre Morais da Rosa, o processo penal se estrutura como uma modalidade de jogo processual composto por um conjunto de normas jurídicas que criam expectativas de ganho ou perda em momentos definidos (ex.: absolvição), por meio de jogadas temporalmente demarcadas (ex.: alegações finais), para os quais o Estado Julgador emite comandos (ex.: decisão terminativa) de vitória ou derrota. Por esse motivo, é preciso que o jogador processual antecipe as expectativas de comportamento e conheça o aparato normativo dos Tribunais.

Por exemplo: na apreciação do HC 185.181 AgR/MG, entre 19 e 26.6.2020, a Segunda Turma manteve a negativa de seguimento do habeas, com a concessão da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva de paciente condenado ao cumprimento de pena em regime inicial semiaberto, aludindo ao entendimento consolidado do STF quanto à incompatibilidade da prisão provisória com a fixação de regime de início de pena menos severo que o fechado (HCs 165.932, 138.122 e 141.292).

De igual modo, no HC 188.091 AgR/SP (14 a 21.8.2020), apesar de inadmissível a impetração contra decisão denegatória de provimento cautelar, a Primeira Turma manteve a concessão da ordem de ofício (superando a Súmula 691/STF), uma vez inobservada a jurisprudência da Corte acerca da necessidade de o decreto prisional se fundar em elementos concretos idôneos (artigo 312 do CPP). Na hipótese, o impetrante se desincumbiu do ônus de explicitar que a custódia estava lastreada “sobretudo na gravidade abstrata do tráfico de quantidade pouco expressiva de maconha (aproximadamente, 160 g de maconha)”, obtendo o resultado favorável.

Ou seja, nos mencionados casos, é mais fácil antever o comportamento do julgador, para, inclusive, viabilizar o exame do processo, quando utilizada a tática de ressaltar os fundamentos mais acessados para concessão de ordem de habeas corpus nos casos específicos (prisão preventiva lastreada somente na pequena quantidade de droga e condenação a regime menos gravoso), ao invés de submeter pedidos outros que não encontram guarita nos precedentes reiterados da Corte.

Portanto, para além de viabilizar-se a análise da matéria de fundo em sede de cognição sumária, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos, é fundamental que o impetrante conheça o posicionamento das Turmas e dos Ministros acerca, tanto dos óbices ao cabimento de HC no STF, podendo optar por aguardar a sua supressão (ex.: chegar-se ao STF somente após o julgamento do agravo pelo STJ), quanto dos argumentos lançados pela Corte relativamente à questão suscitada (prisão preventiva, dosimetria de pena, regime de cumprimento etc.).

Isto é, até para fins de construção de ônus argumentativo voltado à superação de entendimentos desfavoráveis aos interesses veiculados, na hipótese de Habeas Corpus “incabível”, é preciso demonstrar que se conhece o entendimento dos julgadores envolvidos.

Assim, diante de tantos entraves opostos contra o cabimento de HC no STF, é preciso fugir do modelo automatizado de impetração, analisando-se o contexto processual e escolhendo-se a melhor estratégia (caminho) e as táticas mais adequadas (ações voltadas a alcançar a estratégia), com criatividade para antever as dificuldades e buscar alternativas que impliquem a obtenção do provimento, ainda que “exofficio”.


Mariana Madera Nunes é advogada, mestranda em Direito (IDP), ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Universidade Católica do Salvador.

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