Maíra Cardoso Zapater é professora do curso de Direito da EPPEN/Unifesp
(crédito imagem: arquivo pessoal)
Por Maíra Cardoso Zapater (*)
Sempre que um fenômeno danoso toma corpo em determinada conjuntura, é comum que, em um primeiro momento, se procure alguém a quem atribuir esse dano para, a seguir, buscar punir a pessoa considerada sua causadora. É assim que surgem as demandas pelo "fim da impunidade”, em geral com o uso do Direito Penal, seja classificando a conduta danosa como crime ou, caso já seja criminalizada, buscando meios para que as penas sejam mais severas.
Porém, para modificar comportamentos e práticas institucionais fazendo uso do Direito (aqui entendido como a produção de normas legais e de decisões judiciais, obrigando ao seu cumprimento em caso de violação), as normas regulatórias (ou seja, aquelas que estabelecem regras sobre como esses comportamentos e práticas devem se dar, estabelecendo, ainda, mecanismos de controle e fiscalização) parecem ter maior potencial transformador de realidades que as normas penais, que se resumem a punir pessoas após a prática de uma conduta indesejável ou lesiva.
Um dos fenômenos danosos geradores de apaixonada demanda pelo “fim da impunidade” é a corrupção. E neste ano de 2023 completa-se uma década das chamadas “Jornadas de Junho de 2013”, fenômeno de intensa mobilização política e social que estudiosos(as) dos mais diversos campos ainda buscam decifrar, e que é recorrentemente lembrado pelo recrudescimento de um autodenominado “movimento contra a corrupção”.
No campo do Direito a demanda da “luta contra a corrupção” trouxe como desdobramentos dois textos legais: a Lei Anticorrupção e a Lei das Organizações Criminosas, publicadas respectivamente em 1º e 2 de agosto de 2013. Ambas foram apresentadas como “uma resposta à voz das ruas”, buscando simbolizar um alinhamento dos poderes instituídos com essa perspectiva dos protestos.
É interessante destacar que nenhuma das duas leis trata do crime de corrupção. Embora, possivelmente, para a maioria das pessoas, corrupção seja o nome dado a condutas desonestas que visam obter privilégios, prejudicando benefícios e políticas públicas para a população, no Direito Penal, sua descrição tem características específicas. A previsão da corrupção como crime contra a Administração Pública se encontra no Código Penal, e consiste, em linhas gerais, em oferecer alguma vantagem (popularmente chamada de "propina") em troca de um favor de um(a) funcionário(a) público(a) (corrupção ativa) ou, sendo funcionário(a) público(a), aceitar a propina, prometendo algum favorecimento (corrupção passiva). Tanto a corrupção ativa quanto a passiva estão sujeitas a penas que variam entre 2 e 12 anos de reclusão.
A Lei das Organizações Criminosas trata de matéria penal e processual penal, e atualiza um texto que a antecede, de 1995, formulado e publicado em contexto muito diverso daquele junho de 2013; seu projeto original data de 1989, e guardava relação com o então novo debate sobre a difusão e combate ao crime organizado internacional, em especial o tráfico internacional de drogas. A proposta de atualização é do ano de 2006, e seu texto já havia sido aprovado no Congresso em 2012, mas somente em julho de 2013 é enviado à sanção presidencial. Dentre as disposições ali contidas, destaca-se a regulamentação da colaboração premiada (instituto previsto na lei brasileira desde a década de 1990 sob a rubrica “delação premiada”), e cuja estrutura será de fundamental importância para o desenvolvimento da Operação Lava Jato, não obstante as muitas críticas feitas desde então sobre aspectos inconstitucionais do texto da lei em abstrato, potencializados pela questionável interpretação dos(as) magistrados(as) que julgaram processos criminais decorrentes da operação de que partidos políticos e empresas poderiam ser classificados como “organizações criminosas”.
Já a Lei Anticorrupção, que tem sido lembrada como instrumento de “combate à impunidade”, não é uma lei penal. O texto não trata dos aspectos criminais da corrupção, mas, sim, regula a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas quando constatada a prática de atos de corrupção e ilícitos em licitações e em contratos do poder público federal, estadual ou municipal. A lei impõe às pessoas jurídicas contratadas pelo poder público o dever de criar normas internas visando maior controle de seus/suas funcionários(as), por exemplo, criando órgãos internos de fiscalização, estabelecendo programas de treinamento e instalando canais para denúncias de práticas ilícitas. O texto estabelece ainda a responsabilidade das empresas pelas condutas praticadas por seus/suas funcionários(as) e outras pessoas que tenham prestado serviços, ressarcindo prejuízos e mitigando danos.
Ou seja: trata-se de lei que cria regras referentes a práticas institucionais, visando regular e fiscalizar comportamentos das pessoas pertencentes a essas instituições, de modo a evitar que se pratiquem condutas corruptas, estabelecendo formas de reparação aos danos causados. O Direito Penal, por sua vez, cria regras de conduta para os(as) agentes do Estado, que não pode criminalizar qualquer conduta (há limites constitucionais para isso), que não pode punir por conduta que não seja prevista em lei como crime, e que não pode encarcerar uma pessoa sem seguir o devido processo legal. Mas não cria regras de conduta para o(a) cidadão(ã), ainda que o senso comum clame, equivocadamente, pela “punição exemplar”, ou seja, aquela que serve de exemplo para que a conduta indesejável não seja praticada novamente.
Frases como “tem que doer no bolso” ou “tem que fazer pagar pelos prejuízos aos cofres públicos” manifestam desejos que somente podem ser realizados por normas não penais. Não é o Direito Penal que faz doer no bolso ou que obriga ao ressarcimento ao erário, mas sim o Direito Administrativo e o Direito Civil.
Interrompo aqui essas reflexões para propor alguns questionamentos: passada uma década das Jornadas de Junho, onde parte ruidosa dos(as) manifestantes pedia nas ruas pelo “fim da corrupção”, que experiências podemos extrair das respostas fornecidas pelo Direito? O que a série histórica de dez anos pode nos revelar sobre o uso do Direito Penal como meio de solução de conflitos?
(*) Maíra Cardoso Zapater é professora do curso de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo (EPPEN/Unifesp), Campus Osasco/SP
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