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terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Livro descortina cotidiano na Idade Média e como questões morais e comportamentais eram difundidas

Obra traz a análise e a tradução de conjunto de textos, até então inéditos em português, que versam sobre o cotidiano medieval em solo ibérico nos séculos 13, 14 e 15

Reprodução da tela La Virgen de los Reyes Católicos, de Fernando Gallego (imagem: Wikimedia Commons)


Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Circula, atualmente, pelas redes sociais uma série de costumes e práticas que dizem respeito à construção de uma disciplina voltada para o corpo. Nessa seara, figuram influenciadores com discursos sobre a importância de ter constância na prática do exercício físico e a necessidade do autocuidado.


“Esse discurso médico prevaleceu a partir do século 19 e vem se modificando e sendo difundido por diferentes meios até hoje. Ao longo da Idade Média, no entanto, era o discurso eclesiástico que ordenava o corpo e o espírito. Nele havia um valor de verdade conferido, semelhante ao que a sociedade contemporânea atribui ao discurso médico, e que muito tem a revelar sobre questões cotidianas daquele tempo”, conta Leandro Alves Teodoro, professor de História Medieval do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis.


Teodoro é autor do livro Guias dos costumes cristãos castelhanos: o Espelho da alma e outros opúsculos pastorais dos séculos XIII, XIV e XV, obra publicada recentemente pela Editora Unicamp e que traz a tradução de opúsculos até então inéditos em português e a noção de como circulavam costumes e crenças cristãs no solo ibérico em plena Idade Média. O livro é um dos trabalhos produzidos no âmbito da pesquisa “O ensino da fé cristã na península Ibérica (sécs. XIV, XV e XVI)”, apoiada pela FAPESP.


De acordo com Teodoro, o trabalho busca mostrar como se dava a produção de recomendações para a fixação de condutas morais e comportamentais. “Esses documentos eclesiásticos falam sobretudo do cotidiano na Idade Média e sobre moral e comportamentos. A partir deles, é possível perceber como uma ação básica poderia ser fixada e aprendida. É claro que a igreja tinha um papel fundamental nisso, mas o livro conta com uma variedade de textos que mostram não só as questões que estavam em voga na época, mas também como esse conteúdo era disseminado, que palavras eram usadas e muito da vida no reino de Castela naquele período”, conta.


A partir de textos como “Breve doctrina y enseñança”, de Frei Hernando de Talavera, confessor de Isabel I – rainha de Castela e Leão de 1474 a 1504 – e primeiro arcebispo de Granada, ensinam-se rudimentos do alfabeto e da gramática. Já em “Provechoso tractado de cómo devemos aver mucho cuydado de espender muy bien el tempo”, dirigido inicialmente à Condessa de Benavente e depois impresso em 1496, o objetivo era refletir sobre como dividir o tempo – com horas dedicadas à oração e à caridade, por exemplo –, além de questões morais sobre como evitar os excessos alimentares ou como tratar as pessoas.


“São livros-motivos que ensinavam certos costumes e práticas comezinhas construídas a partir do discurso da moral cristã. Portanto, ali também estão resumidas lições sobre os mandamentos, os pecados e as orações. É importante destacar que, naquele período, o acesso ao livro, ao papel, era muito difícil, independente se eram príncipes, religiosos, ou quem frequentasse universidades. Então, a ideia naquele tempo era que esses textos fossem lidos, memorizados, para que depois fossem citados, criando uma circulação oral muito maior do que a textual”, explica.


A palavra de Deus e dos homens


A palavra tem um caráter central para compreender como foi feita a difusão desses conteúdos. “Procurei apresentar para o leitor do século 21 estruturas retóricas do final da Idade Média que tinham sido escritas em castelhano. Por isso, busquei respeitar as estruturas gramaticais e o vocabulário, pois um dos objetivos da minha pesquisa era justamente analisar esse jogo vocabular. Ou seja, entender como o mundo começava a ganhar sentido para as pessoas a partir das palavras que elas usavam e o meio pelo qual elas as utilizavam para ensinar um comportamento ou moral”, afirma o pesquisador. “Portanto, o vocabulário e a estrutura dos textos podem causar estranheza ao leitor do século 21. Mas é essa a intenção: causar algum espanto para que o leitor possa perceber essas estruturas retóricas tão caras a uma sociedade que não é mais a nossa”, completa Teodoro.


Um exemplo sobre a importância da palavra está no texto “Glosa del Pater Noster”, obra comumente atribuída ao bispo de Jaén e uma das primeiras peças escritas em castelhano, em que a oração do Pai Nosso é traduzida do latim e explicada de maneira simples, para que conversos e cristãos a memorizassem e reconhecessem o valor de seu conteúdo.


“Trata-se de uma explicação sobre o Pai Nosso e, a partir dessa oração, o bispo de Jaén jogava questões de pertencimento. As palavras usadas no texto nos permitem identificar quais eram os vocábulos utilizados de modo cotidiano naquela época”, relata o pesquisador à Agência FAPESP.


Já o opúsculo “Espejo del alma”, de Lope Fernández de Minaya, é recheado de adjetivos e metáforas que permitem compreender preocupações da vida medieval em várias práticas, como alimentação, cuidados com os seus dentro e fora de casa e a manutenção da amizade.


“Os adjetivos são cruciais nesse texto, que tem o intuito de, como um espelho, ver uma alma feia e deixá-la bonita. Portanto, a metáfora já começa por aí e o livro tem muitos adjetivos: feio, desonesto, sujo. São palavras que utilizamos até hoje para taxar uma prática como não recomendada, mas como se tratava de uma cultura memorialística [a maioria das pessoas não sabia ler e livros eram objetos raros], os adjetivos cumprem papel ainda mais importante, pois são eles que podem sintetizar algo que será memorizado”, diz.


Mais informações sobre o livro podem ser encontradas em: https://editoraunicamp.com.br/catalogo/?id=1913.
 

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