Victor Missiato, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie, Tamboré. Dr. em História e analista político
Semanas atrás, a psicanalista Maria Rita Kehl foi alvo de duras críticas por parte de alguns militantes de esquerda, quando ela criticou o narcisismo dos movimentos identitários e sua dificuldade em horizontalizar uma perspectiva de representação social que universalize a perspectiva humana no mundo. Trata-se de mais uma fissura nas relações políticas entre as diferentes posições do campo progressista no Brasil.
Os recentes casos de “fogo amigo” por parte da esquerda brasileira revelam uma crise mais profunda, que pode ser analisada tanto do ponto de vista teórico quanto político.
No caso da questão teórica, desde o colapso da União Soviética, um projeto de vida, poder e sociedade ruiu perante as estratégias da esquerda mundial. Segundo o historiador Enzo Traverso, em sua obra “Melancolia da esquerda: marxismo, História e Memória” (ed. Âyiné), “a dialética do século XX foi enterrada. Em vez de liberar mais energias revolucionarias, o fim do socialismo de Estado acabou por frear a trajetória histórica do próprio socialismo”. O universalismo da esquerda ruiu ao ponto de se apropriar de uma perspectiva neoliberal do indivíduo enquanto um “lugar de fala”, que inviabiliza um horizonte de lutas e movimentos.
Politicamente, a esquerda brasileira conseguiu alcançar diversas vitórias eleitorais nos últimos trinta anos. No entanto, os limites de suas agendas foram se tornando cada vez mais estreitos à medida que o poder do Estado não conseguiu lidar com as diversas crises econômicas e políticas. Do Mensalão ao Petrolão, passando pela prisão de Lula e o impeachment de Dilma Rousseff, a capacidade de negociação e organização de políticas progressistas foi se esvaindo ao longo do tempo. No atual governo Lula, inúmeras Medidas Provisórias caducaram, por exemplo.
Desse modo, as únicas iniciativas bem-sucedidas no campo do progressismo foram a aprovação ou ampliação de algumas políticas bolsistas, que cada vez mais possuem um efeito placebo na estrutura desigual da sociedade brasileira. Em resumo, o Partido dos Trabalhadores, maior força de esquerda do país, estabeleceu uma política de ampliação da cidadania através do acesso ao consumo, perdendo um timing precioso de um boom demográfico favorável a políticas voltadas para o desenvolvimento industrial e aumento da produtividade.
O resultado desse processo de deterioração das esquerdas brasileiras vem sendo demonstrado a cada pesquisa de opinião, quando a desaprovação do governo reflete também o esfacelamento da única liderança capaz de aglutinar um grande campo progressista. Lula, sofrendo com problemas de saúde periódicos, cometendo gafes semanais, não dialogando com os congressistas e sem nenhum grande projeto para chamar de seu, representa a agonia de uma esquerda cada vez mais incapaz de propor algo novo e estrutural para o povo brasileiro.
No balanço da atual, com a reforma ministerial, fica cada vez mais evidente que a aposta de Lula 3 será na intensificação de um populismo econômico com vista em uma reeleição fadada a receber uma auto-herança maldita, por meio de uma bomba fiscal, uma dívida pública e um processo inflacionário que tendem a diminuir cada vez mais o poder de compra da população. Ademais, sem um projeto que eleve a capacidade produtiva do país, cada vez mais nos restará torcer por safras recordes no setor agropecuário, a fim de esticar um pouco mais a corda da crise já anunciada. Se a esquerda decidiu pelo seu esgotamento, resta-nos torcer para que ela não leve junto o país todo consigo.
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