A Crônica da Sacola ou o Odor do Subdesenvolvimento - Blog A CRÍTICA
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domingo, 13 de abril de 2025

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A Crônica da Sacola ou o Odor do Subdesenvolvimento

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Não raro, ao dobrar a esquina das ideias, esbarro com certas cenas que fariam corar um sátiro ou estremecer de riso um cínico grego. Digo-vos que o Brasil, essa espécie de república tropical com vocação para espetáculo, vem se especializando na arte sutil da autossabotagem. Somos, ao que parece, uma civilização que marcha alegremente para trás, com ares de modernidade e cheiro de esgoto.


A notícia, vinda do interior do Piauí — terra quente e honrada —, dava conta de um morador que, ao subir ao telhado, não encontrou ali o descanso das telhas, mas sim uma coleção de sacolas plásticas contendo o que a decência me impede de nomear com todas as letras, mas que o povo, sempre mais direto, chama de "cocô". Imaginem, caros leitores, o telhado convertido em pinacoteca do dejeto! A arte moderna ainda não chegou a tanto.


Tal prática, pasmem, não é exclusividade de lá. Na provinciana e ultrasubdesenvolvida Caicó, como me chegou aos ouvidos pela via torta das confidências, também se arremessam sacolas fecais com a mesma displicência com que se jogam confetes no entrudo. O vento, cúmplice ou vítima, encarrega-se de distribuir o conteúdo, numa espécie de loteria sanitária onde todos perdem.


O que me intriga, mais que o gesto em si, é o espírito que o anima. Pois vejam: o homem que defeca em sacola e a arremessa ao mundo não ignora a existência do banheiro; ele apenas opta pela barbárie com a mesma naturalidade com que se opta por um cafezinho. Há nisso algo de profundamente instrutivo — e desesperador.


O subdesenvolvimento, ao contrário do que pensa a boa sociedade, não é uma condição econômica apenas: é uma disposição moral. Paulo Freire, esse espírito incômodo, já apontara certa "democratização da sem-vergonhice", uma ética ao avesso que transforma vício em virtude e ignorância em ornamento. O Brasil, em sua busca por um lugar ao sol, encontrou um banco de praça à sombra da razão.


Não nos iludamos: a burrice, hoje, é festejada como forma legítima de expressão cultural. Vede os influenciadores — esses novos bufões digitais — que, para obter o pão de cada dia, entregam-se a marmotas e grotescos, como se a inteligência fosse um estorvo a ser evitado a todo custo. O povo, que já não lê porque não quer ou porque não pode, consome o grotesco como se fosse epifania.


E o lixo, senhores, é o termômetro da civilização. Um país que não sabe onde colocar o lixo — e, por extensão, os próprios excrementos — dificilmente saberá onde colocar seus valores, sua história, ou seu futuro. Enquanto os dejetos humanos continuarem a sobrevoar os quintais da república, o Brasil seguirá confundindo modernidade com tecnologia, educação com diploma e civilização com asfalto.


Desconfio, no entanto, que a pior sacola arremessada ao vento não é a de plástico — é a ideológica. É essa que vem cheia de promessas fáceis, de moralidade fake e de um nacionalismo de pacote, daqueles que se desfazem na primeira chuva.


E a chuva, meus amigos, sempre vem.

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