Atualmente, vivemos um retrocesso no direito de defesa, motivado por um discurso de criminalização político-penal.
Ricardo Breier |
Defesa Penal Líquida: A Crise do Direito de Defesa
O direito de defesa é essencial no Estado Democrático de Direito, conforme previsto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Também é garantido por tratados internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Esse direito deve atuar como um escudo contra arbitrariedades penais, garantindo a presunção de inocência e assegurando ao cidadão um julgamento justo.
Contudo, no Brasil, há uma crise na efetivação desse direito, principalmente nos fóruns criminais. Essa crise gera um processo de liquidez que enfraquece as garantias constitucionais. Inspirando-se na teoria de Zygmunt Bauman, é possível afirmar que o direito de defesa está passando por esse processo de liquidez. Esse direito tem suas raízes na luta contra regimes absolutistas e tirânicos. Obras como "Dos Delitos e das Penas", de Cesare Beccaria, alertavam sobre abusos processuais e ajudaram a introduzir princípios como a presunção de inocência e o devido processo legal, que foram incorporados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no Pacto de San José da Costa Rica de 1969.
Atualmente, vivemos um retrocesso no direito de defesa, motivado por um discurso de criminalização político-penal. O crescente clamor social e político por punições tem levado a decisões judiciais que relativizam garantias constitucionais, utilizando interpretações subjetivas para justificar violações aos direitos de liberdade. O conceito de "hipergarantismo" é frequentemente usado para desqualificar a defesa técnica e responsabilizá-la pela impunidade. Essa retórica cria um ambiente propício para abusos no sistema de justiça penal, onde a condenação é muitas vezes alcançada por critérios objetivos, ignorando a presunção de inocência.
Na prática, essa fragilidade resulta em decisões contraditórias, insegurança jurídica e tratamento desigual entre os réus. Casos de prisões preventivas prolongadas sem justificativa clara, restrições ao direito de ampla defesa e a relativização da presunção de inocência têm se tornado comuns. Isso prejudica não apenas indivíduos inocentes, mas também gera um ambiente de instabilidade, minando a confiança da sociedade no sistema de justiça. Quando a defesa se enfraquece, o Estado tende a se tornar mais autoritário, priorizando a condenação em detrimento da busca pela verdade.
Os advogados enfrentam dificuldades para garantir prerrogativas básicas, como a comunicação privada com seus clientes, e as restrições ao acesso a inquéritos e autos processuais se intensificam. Além disso, ocorrem frequentes violações ao sigilo profissional, incluindo a gravação de conversas em parlatórios federais.
Com a relativização do direito de defesa, o sistema penal funciona em um estado de instabilidade. A falta de respeito aos direitos fundamentais resulta em insegurança jurídica e aumenta o risco de condenações injustas. A essência da justiça é prejudicada, e a confiança da população se deteriora. Um exemplo disso pode ser visto no Supremo Tribunal Federal, que tem lidado com os Atos Antidemocráticos e o Inquérito das Fake News, frequentemente ofendendo o direito de defesa.
Os advogados, ao exercer sua missão constitucional, encontram enormes dificuldades em se comunicar com clientes presos, acessar inquéritos policiais e exercer suas prerrogativas sem interferências indevidas. A quebra do sigilo profissional ocorre com frequência, com escutas telefônicas autorizadas entre advogados e clientes, o que fere a inviolabilidade da comunicação entre defensor e acusado.
A advocacia é crucial para garantir o equilíbrio no processo penal. Conforme o artigo 133 da Constituição Federal, o advogado é indispensável para a administração da justiça e deve ter suas prerrogativas respeitadas. Entretanto, há um aumento na criminalização da profissão, confundindo o defensor com o acusado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) desempenha um papel essencial na defesa dessas prerrogativas, denunciando violações e garantindo que os advogados possam exercer suas funções sem interferências.
A erosão do direito de defesa representa um grave risco à sociedade. Um sistema judicial que relativiza garantias fundamentais, limitando o direito de defesa, não apenas compromete a liberdade individual, mas também mina a credibilidade da justiça. Assegurar o direito de defesa é garantir a própria democracia. A história nos ensina que sistemas jurídicos autoritários sempre restringiram esse direito como ferramenta de controle e repressão. Exemplos como o regime nazista na Alemanha, onde tribunais eliminaram opositores políticos e grupos marginalizados, mostram que a defesa era em muitos casos inexistente ou puramente simbólica. Na União Soviética de Stalin, os julgamentos políticos aconteciam sem respeito ao direito de defesa, resultando em execuções sumárias e punições baseadas em confissões obtidas através de tortura.
No Brasil, durante o período militar, advogados foram perseguidos e impedidos de atuar livremente, enquanto seus clientes eram condenados sem chance de defesa legítima. Esses fatos históricos servem como alerta para as consequências da supressão do direito de defesa. O combate ao crime não pode ser feito às custas da legalidade, pois, como afirmou Piero Calamandrei: "Sem legalidade, não há liberdade".
Portanto, é fundamental que a sociedade civil, junto às instituições políticas e jurídicas, permaneça alerta contra tentativas de enfraquecer esse direito fundamental. As garantias têm se tornado vulneráveis, com reflexos em instâncias judiciais inferiores, tribunais e juízes. Mais uma vez, a advocacia terá a missão de denunciar esses abusos – como a voz firme que caracteriza seu papel de defensor dos direitos – diante da preocupante situação atual: a crescente liquidez do nosso bem mais precioso, que é o direito à defesa como proteção das liberdades.
Ricardo Breier
Advogado Criminal
Pós-Doutor em Direito
Presidente da OAB/RS (2016/2021)
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