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quarta-feira, 26 de março de 2025

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“Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago: trinta anos depois

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Reprodução


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Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP no Jornal da USP

  • Cada vez me interessa menos falar de literatura.
    (José Saramago, em 1998)

    Por vezes, quem estuda literatura sente necessidade de delimitar as fases criativas de um autor. Sistematizada no século 19, a historiografia literária está repleta de exemplos dessa abordagem, o que talvez se explique pela pretensão de decifrar estágios da vida em correspondência com determinados episódios ficcionais, pressupondo que traços da personalidade empírica transpareçam e justifiquem a dicção de narradores e personagens. Esse modo de ler costuma conter um pressuposto didático: exercitar a comparação entre diferentes narrativas de um mesmo escritor, examinando-se os variados gêneros literários que produziu; os múltiplos temas que ficcionalizou; as diferenças no estilo de escrita ao longo do tempo etc. Contudo, corre-se o risco de imobilizar as múltiplas faces da obra literária.

    Desde cedo, a extensa produção de José Saramago passa por escrutínio similar, problematizado pelo escritor na longa entrevista que concedeu a Carlos Reis em 1998 – ano em que recebeu o prêmio Nobel. Saramago colocava em xeque a hipótese crítica de que fosse autor de “romances históricos” e de que teria abandonado essa modalidade, após a publicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). A seu ver, os contos, peças e romances que escrevia dialogavam com a história, variando apenas a ênfase posta nos dados, trabalhados em prol da ficção. A argumentação faz muito sentido, especialmente se levarmos em conta que o escritor não concebia história de modo linear e teleológico, mas como simultaneidade de eventos dispostos sobre um mesmo painel.

    Obviamente, não se está a sugerir que certas marcas do autor não participam da própria obra. A questão está em discutir qual o limite entre a análise ficcional, admitidas variadas perspectivas interpretativas (formal, histórica, social etc.) e o mero biografismo.

    Comentemos um episódio que pode colaborar nesta reflexão.

    O discurso Da Estátua à Pedra – o Autor Explica-se foi lido na universidade italiana de Turim, em abril de 1998. Na ocasião, José Saramago participava de um evento onde especialistas analisavam a sua obra. A certa altura, convidado pelos organizadores do certame a falar, o escritor sublinhou que, à diferença de Alexandre Herculano, historiador e romancista do século 19, “Memorial do Convento não pertence a este tipo de romance histórico. É uma ficção sobre um dado tempo do passado, mas visto da perspectiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem”.

    Embora essa aguda observação de Saramago tivesse grande relevância, parte da crítica especializada (posterior) se concentrou na segunda parte do discurso, supondo que fosse mais importante nomear e afixar as duas fases do escritor – situando-as antes e depois do Evangelho. José Saramago admitiu que havia diferenças de perspectiva em sua obra (só percebidas após a publicação de Ensaio sobre a Cegueira, em 1995); porém, ele não tinha consciência disso, antes de escrevê-lo: “Quando terminei O Evangelho ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira”.

    A escrita literária é um trabalho em constante mutação, sujeito a circunstâncias e novos pontos de vista, que o autor não consegue antever. É relativamente cômodo, mas deveras simplificador, pautar o exame da obra de José Saramago em fases, períodos, estágios… O que parecia estar implícito nos seus discursos e entrevistas era a percepção de que suas obras, embora escritas em momentos diferentes, permitiam o duplo movimento da audiência: lidas de trás para frente, deixavam ver que a estátua se comunicava com a pedra; lidas do começo para o fim, as narrativas poderiam ser captadas não como etapas que sinalizassem a suposta evolução do autor; mas como partes complementares de um processo em constante transformação.

    De que trata Ensaio sobre a Cegueira? De variadas condições humanas, situadas a meio caminho entre o cotidiano e o extraordinário. A cegueira branca impacta pessoas comuns, de trajetórias mais ou menos previsíveis. A ação se passa num cenário urbano que poderia ser Lisboa, Porto, Braga ou Coimbra; mas também se assemelha a pedaços de São Paulo, Londres, Paris, Moscou, Pequim, Nova York, Lima, Buenos Aires ou Cidade do Cabo… O engenho do escritor não reside apenas na invenção de um mal fictício que não pode ser diagnosticado pela medicina tradicional, mas nas consequências da falta de visão (real e alegórica) das personagens.

    Em meio ao caos, provocado pela cegueira geral, os papéis sociais ora se invertem, ora se reafirmam. As autoridades recaem no autoritarismo; os oportunistas se aproveitam da ocasião para obter vantagens; alguns morrem; outros sobrevivem. Em contraponto, o modo como a mulher do médico age permite contestar o egoísmo; certas atitudes da rapariga de óculos desacreditam os clichês moralistas, vociferados por hipócritas. No plano geral, o comportamento tido por ordeiro pode resvalar no crime; os dogmas, as leis e os costumes são colocados em suspenso por conta de um fenômeno inédito.

    Emprestando outro sentido ao que venhamos a compreender como romance histórico, Ensaio sobre a Cegueira também pode ser lido como reflexão sobre a cronologia recente das gentes forradas de neoliberalismo, ideologias excludentes e pensamento único. Seres que, de um instante para outro, precisariam reaprender como agir de modo solidário; portar-se de modo inclusivo e problematizar o discurso plano, reto e unívoco. Por sinal, a exemplo do que aconteceu em obras precedentes e posteriores a esse romance, José Saramago também sugeria (em 1995) que o texto literário envolve fruição, mas também pode ser pretexto para engajar os leitores.

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