Levantamento revela falta de transparência na aplicação de recursos públicos, contrariando decisão do STF e acendendo alerta sobre uso político das verbas
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Rosinei Coutinho/STF |
Estados e municípios brasileiros deixaram de prestar contas sobre o uso de R$ 3,8 bilhões em emendas parlamentares na modalidade “Pix” – uma cifra que corresponde a 86% dos repasses feitos no primeiro semestre de 2024. A informação, revelada por levantamento da Transparência Brasil a pedido do jornal O Globo, escancara a ausência de controle sobre a destinação de recursos públicos e contraria diretamente uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, além de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da transparência.
As chamadas emendas Pix foram criadas em 2019 com o argumento de desburocratizar o repasse de verbas federais a estados e municípios, permitindo que os recursos fossem transferidos diretamente aos cofres públicos locais sem necessidade de convênio. Contudo, a falta de exigências rígidas quanto à prestação de contas gerou um vácuo de controle e fiscalização, transformando a modalidade em terreno fértil para o uso político dos recursos – inclusive em períodos eleitorais.
Segundo o levantamento, dos R$ 4,48 bilhões transferidos no período, apenas R$ 627,2 milhões (14%) têm informações detalhadas sobre sua aplicação. O restante, mais de R$ 3,8 bilhões, permanece sem clareza de uso, o que contraria a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024 e vai na contramão do que determinou o STF em decisões recentes, especialmente a proferida pelo ministro Flávio Dino, que suspendeu temporariamente novos repasses até que fossem criados mecanismos mais robustos de transparência.
Entre os casos apontados por O Globo, chama atenção uma emenda de R$ 17 milhões indicada pelo senador Lucas Barreto (PSD-AP) para a prefeitura de Macapá, aliada política do parlamentar. Os recursos foram repassados pouco antes do início da campanha eleitoral que reconduziu o prefeito ao cargo. Situação semelhante ocorreu em Osasco (SP), onde R$ 15 milhões foram enviados por emenda do senador Alexandre Giordano (Podemos-SP) em apoio à base governista local.
A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, destaca a contradição entre o discurso dos gestores sobre a importância das emendas e a prática de ignorar as obrigações de transparência. “O baixo compromisso dos gestores em cumprir o dever de prestar contas é uma contradição em relação ao que eles dizem sobre a grande importância das emendas para a população”, afirmou.
A LDO determina que, sem a comprovação do uso dos recursos até 31 de dezembro de 2024 por meio da plataforma Transferegov.br, os entes ficam impedidos de receber novas transferências especiais. Apesar disso, o levantamento identificou que 22 das 27 unidades federativas e mais da metade dos municípios brasileiros não cumpriram a exigência legal até o momento.
Democracia sem transparência
A opacidade no uso das emendas Pix evidencia um problema estrutural: a dificuldade de estados e municípios em garantir a prestação de contas e a rastreabilidade dos gastos públicos. “A democracia é um regime constante de delegação de poder, mediante prestação de contas periódicas de políticos”, lembra Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper. Sem transparência, a confiança nas instituições públicas se enfraquece e o risco de desvios e favorecimentos políticos aumenta.
Para especialistas, o problema não é apenas técnico, mas político. O uso das emendas como moeda de troca entre parlamentares e aliados locais, especialmente em anos eleitorais, mostra que o orçamento público pode estar sendo capturado por interesses pessoais e partidários. A falta de visibilidade sobre os gastos impede que a sociedade exerça seu papel fiscalizador e limita a atuação de órgãos de controle como a Controladoria-Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU), responsáveis pela fiscalização das transferências.
A CGU informou que está realizando auditorias sobre a execução dos repasses via Pix. O Ministério Público Federal, por sua vez, já abriu investigações sobre casos suspeitos em diversas regiões do país.
Um alerta sobre o retrocesso institucional
A suspensão dos repasses por decisão do STF, em dezembro passado, e a criação de uma nova lei para tentar regular a modalidade indicam que há esforços institucionais para reverter esse cenário. No entanto, a ausência de prestação de contas por milhares de gestores públicos aponta que, na prática, a cultura da opacidade ainda prevalece.
Com recursos superiores ao orçamento previsto para ações emergenciais como o combate a desastres (R$ 2,6 bilhões em 2024), as emendas Pix deveriam estar sujeitas a um rigor ainda maior. Ao contrário, seguem sendo tratadas como instrumentos de barganha política, em detrimento da responsabilidade pública.
A situação exige vigilância permanente da sociedade, da imprensa e das instituições de controle. Afinal, em uma democracia que se pretende transparente, cada centavo do dinheiro público precisa ter destino claro — e prestação de contas obrigatória.
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